"NÃO É O MEDO DA LOUCURA QUE NOS VAI OBRIGAR A HASTEAR A MEIO PAU A BANDEIRA DA IMAGINAÇÃO" - ANDRÉ BRETON
O Surrealismo é um movimento artístico europeu iniciado pelo psiquiatra André Breton. Tinha como principal objetivo denunciar comportamentos e relações outrora modernos guiados por um racionalismo frio e previsível e recorrer à imaginação e à loucura como escape a essas tendências. Tendo aproximação com pacientes doentes, soube recorrer, para seus métodos de criação artística, à psicanálise. Observa-se que seus métodos de semissono e de automatismo psíquico obedecem à dinâmica do inconsciente descrita por Freud, e que se assemelham até mesmo ao método terapêutico psicanalista. Processos inconscientes, como o de deslocamento, condensação e sobredeterminação são presentes nas obras de arte e escrita surrealista. Tambem o psicanalista Jacques Lacan contribui para a discussão com suas teorias sobre a linguagem do inconsciente, incluindo a instância imaginária, a metonímia e metáfora. Podemos observar que o movimento artístico do surrealismo até mesmo adianta-se à psicanálise, dando a possibilidade de um eu alienado de si narrar uma fábula sobre um terceiro que é ele mesmo.
Movimentos artísticos sempre acompanham contextos históricos e é relevante para quem se interessa, seja pelo contexto histórico ou pela produção artística deste período, encontrar o ponto em que estes acabam por se influenciar. Iniciado pelo escritor e psiquiatra André Breton, emancipado da vanguarda dadaísta, o Surrealismo surge numa época de onde, segundo o próprio autor, a imaginação humana só se permitia atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária, de um rígido racionalismo que diminui a amplidão dos gostos e a envergadura das ideias (1924). Entretanto, a influência primeira e também os métodos utilizados para escapar a essa conscienciosidade e abrir os ouvidos para o discurso dos sonhos já haviam sido descritos por Sigmund Freud, o pai da psicanálise. O caminho assim encontrava-se pavimentado para a passagem de um seleto grupo de artistas do inconsciente através da história.
O Contexto Histórico da Vanguarda Surrealista
O contexto é um mundo pós Primeira Guerra Mundial, onde, segundo Fernandes (2013) a sociedade estava impregnada por ideais de acumulação de riquezas, eficiência racional e uma crença que a ciência e a razão enriqueceriam de alguma forma as relações humanas, o que poderia gerar apenas uma falsa moral carregada de má-fé. O porta-bandeira do movimento surrealista, Breton já podia descrever em melancólicas palavras o modesto destino do homem outrora contemporâneo:
"Sabe das mulheres que possui, as ridículas aventuras em que se meteu, sua riqueza e pobreza já não valem nada; acumulam-se ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a se conquistar (BRETON, 1924)".
A crítica de Breton não se dirigiu apenas aos métodos de relações e comportamentos contemporâneos, mas também ao gênero romance, pois, ainda segundo o autor (1924), até mesmo os romancistas estavam inflados de uma enfastiante previsibilidade e seus livros chegavam a ser "superposições de imagens de catálogos". Não se podia tirar deles nada acerca da virtual imprevisibilidade de uma vida instável que deixara de ser vivida. Nas palavras de Breton (1924, p.2) "esta intratável mania de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, embala os cérebros. O desejo de análise prevalece sobre os sentimentos".
O racionalismo que imperava na época, não permitia considerar fatos senão aqueles oriundos exclusivamente da existência pessoal materialista, porém até mesmo à própria existência foram colocados limites. Era em defesa da civilização que se bania do espírito tudo o que se podia tachar de superstições ou quimeras, defendendo uma busca da verdade e do utilitarismo imediato, guardados por um bom senso de má-fé e um polido discurso moral.
A fuga para a fantasia e a loucura
Entretanto, ainda no documento que demarca a emancipação do Surrealismo do movimento do Dadaísmo, separação essa devida à autonomia concedida ao inconsciente chamada dentro do movimento de automatismo psíquico e teorizada também na área da metapsicologia por Sigmund Freud, o Manifesto Surrealista, de 1924, Breton sugere uma forma de liberdade destas jaulas racionais: a imaginação. Apenas a ela seria possível se render e o resultado dessa rendição seria de uma forma ou outra a felicidade, pois ela é do tamanho do que se pode ser, é mais e é suficiente. E não há necessidade de receio de se enganar. "Para o espírito, a possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem?" (BRETON, 1924, p. 2).
Breton, conhecedor da poesia de Baudelaire e amigo de Apollinaire e de Tristan Tzara, fundador do Dadaísmo, encontrava-se envolvido no âmago da cultura e sociedade francesas. Recém formado médico, pôde observar com seus pacientes ditos "loucos" diferentes formas de expressão de gozo e de liberdade. A indiferença destes em relação às críticas e aos castigos que as pessoas "sãs" lhes impõem eram, para Breton, um indicador de que colhiam grande reconforto de sua própria imaginação e podiam apreciar seu delírio o bastante para suportar que este mesmo delírio fosse válido unicamente, universalmente e apenas para este único individuo; eram apenas vítimas de sua imaginação (BRETON, 1924).
Mas também já indicava a lanterna que iluminaria o caminho para fora das trevas do racionalismo. As descobertas de Freud com respeito ao inconsciente e aos sonhos eram de profundo interesse, para entregar à imaginação, faculdade vital para o gozo imediatamente individual, seu papel fundamental na vida do homem. "Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, há todo interesse em captá-las" (BRETON, 1924, p.4). André Breton indicava com estas palavras a pedra fundamental sobre a qual se estabeleceria todo o movimento artístico: o estudo dos sonhos e do inconsciente.
A partir do colapso moral, ideal, econômico e cultural vivido no pós-guerra europeu, muitos artistas buscam meios inovadores de criação. Este período foi então rico em criações artísticas e de surgimento de vanguardas (Impressionismo, Expressionismo, Dadaísmo, Cubismo e por fim o Surrealismo). Em nome de um novo cânone estético e de revolucionários meios de expressão e proliferação de ideias provenientes do inconsciente, alguns artistas usaram das ideias de Freud, se aproximando, confrontando, esbarrando ou promovendo estas (REZENDE, 2011).
Os elementos surrealistas inscritos como arte, signos e símbolos, imagens e palavras, agora já não era designados pelo seu sentido em si, tal qual aparece em nossa vida cotidiana e racional. Já não era o sentido que importava, mas sim o que aquilo poderia caracterizar em termos de pensamentos (REZENDE, 2011). Havia assim de se procurar a linha que conduziria adentro do mundo da fantasia e do inconsciente.
Além dos sonhos e das fantasias, terreno fértil de imagens e simbolismos oníricos constantemente revisitado pelos surrealistas, outras estruturas clínicas e patológicas surgem no movimento artístico, como a histeria e perversão. A psicanálise também trazia a novidade de que o erotismo não necessariamente precisava ser visto como presente apenas na relação amorosa ou sexual, mas também no mais primitivo jogo pulsional psíquico, e este também seria representado na vanguarda artística. Além das estruturas e das forças eróticas tambem o narcisismo, agora estruturante e essencial para a formação do Eu segundo a teoria psicanalítica, seria representado (REZENDE, 2011). Desta forma, tais forças dinâmicas do psiquismo ganhavam lugar no mundo artístico, condenando, por vezes, vazios existenciais, conflitos intrapsíquicos, angústias e etc.
Os métodos artísticos de Breton e semelhanças com as técnicas psicanalíticas
Breton, quando estudante de medicina, cumpriu serviço militar trabalhando num hospital psiquiátrico. Nesse tempo interessou-se pelos discursos alucinatório dos loucos. A partir disso conhece as obras de Freud e nela encontra bons pressupostos para a análise destes (SANTOS, 2002). Obtém no hospital encontros com a loucura, que o fazem procurar e tambem questionar o limite racional dos mestres de literatura e poesia como Baudelaire e Goethe.
Penetrando no terreno e dando ouvido ao discurso do inconsciente e seus processos psíquicos, o surrealismo buscava fugir de um meio de produção artístico permeado pela lógica consciente e racionalista. A imagem surrealista seria, portanto, aquela menos possível de se concretizar pragmaticamente, que não se traduz pela razão e não propõe uma forma linear e lógica de pensamento. A manifestação do inconsciente e o uso do automatismo psíquico é o que diferencia o surrealismo do movimento dadaísta (FERNANDES, 2013).da na enunciação, no discurso.
Na ausência de um controle demasiado da racionalidade, as representações artísticas surrealistas deveriam surgir através de uma livre associação de ideias, seja essa livre associação através do escrever, do falar ou qualquer outro meio de dirigir-se ao inconsciente (FERNANDES, 2013). Tal exercício é chamado por Breton de automatismo psíquico, muito semelhante ao método clínico de Freud, onde a ampliação da consciência fornecia um valioso material psíquico que poderia realizar transformações de sintomas e liberação de afetos, e tal ampliação era obtida através de pensamentos espontâneos e involuntários dos pacientes, que eram solicitados a conduzir as comunicações (FREUD, 2016).
Assim como na livre associação freudiana buscava-se recuperar o que as censuras afastaram do consciente (SANTOS, 2002), Breton utilizaria método semelhante em si mesmo, para uma escrita automática de um pensamento X em relação acidental com seu próximo vizinho pensamento Y, formando uma inusitada cadeia de ideias. Observa-se em nos trechos de uma poesia escrita em conjunto com Soupault exemplos de escrita produzida por automatismo psíquico: "A vontade de grandeza de Deus Pai não ultrapassa os 4.810 metros na França, altitude medida acima do nível do mar". (SANTOS, 2002, p,12 apud BRETON e SOUPAULT, 1920/1988, p.86) Do mesmo livro, Os Campos Magnéticos, de 1920: "O círculo de heroísmo e dinheiro plana ainda, avião do mais velho modelo, sobre a província" (SANTOS, 2002, p,12 apud BRETON e SOUPAULT, 1920/1988, p.86).
A escrita automática se mostra como uma nova relação do autor com a linguagem; "O eu se apaga para deixar passar a linguagem e se maravilha vendo se produzirem as imagens poéticas" (Santos 2002, p.12). Além da escrita automática, outro método utilizado por Breton é a representação das frases de semissono que, nas palavras do autor são "frases mais ou menos parciais que, em plena solidão, na aproximação do sono, tornam-se perceptíveis para o espírito sem que seja possível descobrir para elas uma determinação anterior" (Santos 2002, p.8, apud Breton, 1922a/1988, p.274).
Para ensinar aos seus alunos sobre as transferências que surgem espontaneamente no discurso do paciente para o seu terapeuta psicanalista, o psicanalista francês Jacques Lacan (2009) destaca que, se uma transferência está presente, aquilo que precisa ser dito para construir um discurso pleno e espontâneo não é encontrado em sua totalidade e apenas pode ser dito aquilo que está disponível após um número de recalques. As palavras podem sofrer uma degradação também após um esquecimento causado também pelos recalques (LACAN, 2009). Assim, a maioria dos discursos é apenas um resto daquilo que não pode ser dito.
Breton, não sendo psicanalista, interessa-se, em princípio, pela qualidade poética da frase de semissono e seu aspecto absurdo. Uma vez captada a frase, tambem era significada com símbolos externos, oriundos da própria percepção do individuo. Segundo Santos (2002), no método freudiano tal associação do absurdo ao perceptual era esperada, um pensamento que incide sem motivo qualquer e o analisando deveria estar disposto a falar destes pensamentos mesmo que totalmente fora de contexto. Da mesma forma, na produção surrealista, um elemento constituinte não deve necessariamente pretender sentido corrente com o próximo ou com o todo, ainda que de fato não estejam, conscientemente, ligados ao acaso.
O inconsciente, segundo Freud (1915) é o reservatório de pulsões, cujo objetivo é sempre ser descarregada. A dinâmica dessa estrutura alem dos meios pelos quais ela opera haviam sido descritas por Freud (1915), que deixava claro que os processos inconscientes eram diferentes dos conscientes. As pulsões, embora habitem a mesma instância psíquica, podem ser de correntes diferentes, sem que se anulem, coexistindo. Essas tendências opostas levarão as pulsões a um compromisso, tal qual finalidade intermediária. Segundo Assunção e Oliveira (s.d.), isso ocorre porque o sistema inconsciente não funciona sob a lógica da certeza, não há negação como ocorre no consciente.
Entretanto as intensidades, metas, e formas dessas pulsões são móveis e volúveis. Regidos pelos processos primários, estão sempre sujeitos de deslocamento, de uma porção do investimento de afeto de uma ideia para outra. A energia se desloca livremente de uma representação a outra segundo os mecanismos de condensação e deslocamento (MAIA, 2009).
O deslocamento ocorre quando uma representação substitui a outra porque recebeu toda sua carga de investimento afetivo. A ligação que torna o deslocamento possível é feita através de contiguidade ou por analogia (MAIA, 2009). Também o processo de condensação, parte do processo primário, acontece quando o elemento que é comum às duas ideias recebe o investimento que antes fora devido às duas, e assim será o responsável por representá-las (MAIA, 2009). Assim, uma representação pode aparecer num sonho com características de outro elemento que não este. Um elemento, comum a ambos, foi o responsável por essa junção.
Desta forma, as pulsões no inconsciente podem atuar segundo padrões de analogias, similaridades e contiguidades. Décadas mais tarde, Lacan (1985), analisando tais métodos de funcionamento do inconsciente, propõe que os simbolismos se exprimem também através de processos linguísticos análogos à metáforas e metonímias. Segundo Oliveira (2012), Lacan também estudou as manifestações do inconsciente através dos sonhos, fantasias e sintomas e formalizou esses mecanismos de condensação e deslocamento de Freud, proporcionando um diálogo da Psicanálise com a Linguística e uma ideia mais ampla das atividades inconscientes representando esses mecanismos na sua teoria de metáfora e metonímia utilizando os conceitos da Linguística.
Segundo Oliveira (2012), o conteúdo inconsciente se mantém latente até que seja transformado em conteúdo manifesto e isso ocorre, de acordo com Lacan, através dos mecanismos de metáfora e metonímia, associados com a dinâmica dos significantes, mecanismos que para Lacan, através da linguagem, tornam os indivíduos Sujeitos, já que para o autor o Sujeito é resultado da formação do inconsciente, e por isso, o que vem do inconsciente não pode ser racionalizado.
A metáfora é definida por Lacan em seu seminário “As Formações do Inconsciente” (1958), como demonstra Oliveira (2012), como um mecanismo que implica a substituição das palavras na cadeia significante do discurso, ou seja, com a metáfora se repõe, comprime e cria novas palavras na cadeia, enquanto metonímia é definida pelo autor como um mecanismo de combinação de palavras na cadeia significante, de tal modo que um significante desliza para outro.
Assim, têm-se que, pela similaridade de posição, o significado simbólico de um elemento pode substituir completamente um outro, sendo possível inferir do contexto o mesmo sentido. Fazem a substituição de elementos na cadeia significante, mantendo a conexão metonímica de ambos. Vejamos o exemplo usado por Lacan, onde substitui-se "lábio" por "cereja":
[...] este lábio é como uma cereja, e dar a palavra cereja vinda como uma palavra induzida a propósito da palavra lábio. Elas estão ligadas por quê? Porque elas são ambas vermelhas, semelhantes devido a que atributo? Não é que seja só isto, ou porque elas têm ambas a mesma forma, analogicamente, mas o que é perfeitamente claro, é que, de qualquer forma, estamos imediatamente, e isso se sente, sob o efeito absolutamente substancial que se chama o efeito de metáfora. [...] Estamos no plano da metáfora no sentido mais substancial do que contém este efeito, esse termo, e sobre o plano mais formal, isto se apresenta sempre, como eu lhes reduzi a este efeito de metáfora, a um efeito de substituição na cadeia significante. (LACAN, 2002, p.57- 58).
Assim como nas imagens das obras surrealistas, os elementos intercalam, trocam e emprestam suas significações, tanto quanto nas formas de processos primários ou de metonímia e metáfora. Mesmo não se falando em afeto e ideia, processos primários ou resistências em surrealismo, se levarmos em conta tais processos psíquicos é possível localizar o elo de significados entre os elementos e os mecanismos que fazem com que algo surja ante outro algo que é, por ora, descartado.
Mesmo no discurso ou palavra que constitui a poesia surrealista, esta pode, ao atingir à luz do consciente, fundir-se a uma imagem que aparentemente não condiz com seu significado. Processo este que Lacan atribui às significações das palavras em nossa instancia simbólica. Em seu manifesto Breton narra uma situação semelhante, quando uma frase "bem bizarra" surgiu em sua mente, frase insistente como que "batendo na vidraça". A partir dessa metáfora pôde formular tambem o caráter orgânico da frase. Breton (1924) compartilha de sua experiência:
"(...)esta frase me espantava; infelizmente não a guardei até hoje, era algo como: “Há um homem cortado em dois pela janela”, mas não poderia haver ambiguidade, acompanhada como estava pela fraca representação visual de um homem andando, e seccionado a meia altura por uma janela perpendicular ao eixo de seu corpo. Fora de dúvida era a simples aprumação no espaço de um homem debruçado à janela. Mas esta janela tendo seguido o deslocamento do homem vi que se tratava de uma imagem de tipo bastante raro e logo pensei em incorporá-la a meu material de construção poética. Assim que lhe concedi este crédito ela deu lugar a uma sucessão quase ininterrupta de frases que não me surpreenderam menos e me deixaram sob a impressão de uma tal gratuidade que me pareceu ilusório o império que até então eu mantinha sobre mim mesmo(...)" (BRETON, 1924, p.4).
O pintor espanhol Salvador Dalí elucida esta fórmula de Lacan, quando numa entrevista, em que os repórteres insistiam, como muitos insistem até hoje, em dizer que a sua obra é delirante, delirante aqui no sentido de tudo aquilo que escapa aos cânones do senso comum, responde “Eu existo porque deliro. Eu deliro porque existo.” É óbvio que aqui o verbo delirar tem para o artista o sentido preciso que a fantasia recebe na escrita de Lacan, conteúdos que se encontram no registro imaginário sem necessariamente relação alguma com a realidade e que são como imagens em ação, ou, simplesmente, imaginação. (LACAN, 2009).
Desta forma, segundo Fernandes (2013) o movimento surrealista descreve uma nova concepção sobre a vida, eclodindo em todas as esferas da experiência humana, ganhando assim seu lugar na prateleira da filosofia. O homem que vive na sua busca continua de sucesso na vida secular aliena-se, pois sonha, mas perde-se no processo. O surrealismo critica tal busca, sendo capaz de colocar o homem no encontro vazio de seu objetivo igualmente vazio, ou seja, entregando-o ao sonho neste exato momento, num aqui e agora desamparado de materialismos.
Com seu método de automatismo psíquico, escrita automática e semissono, Breton adiantou-se à psicanálise colocando o Eu como alienado à realidade, como que narrando uma fábula sobre um terceiro. Introduz um estilo narrativo, que se desenvolve no sentido de uma autoanalise, em termos freudianos (SANTOS, 2002). Assim como no teatro o ator realiza o papel de outro, neste estilo o Eu faz-se narrador de si; o "espelho diante do qual nos colocamos nos reenvia de nós uma imagem estrangeira" (SANTOS 2002, apud BRETON, 1924b/1992, p. 266).
Cinge o eu do pensamento, este narrador que se descola da realidade do pensamento e torna-se sujeito autônomo. A realidade é construída a partir do discurso, da enunciação, sujeito à imaginação mesmo sem relação com o real, assim como a não realidade do discurso, o que é recalcado e afastado do consciente (LACAN, 2009). O eu falante se confronta com sua realidade, a condição de ser falante, o que antes fora subtraído pelas limitações do eu, pode religar-se no discurso. No surrealismo, alem de religar-se no discurso, este pode obedecer a processos superiores, primários, os do inconsciente. Lacan mais tarde nutriria sua teoria com tais pressupostos, defendendo que a relação do sujeito com a linguagem é de alienação, tanto quanto a relação do eu com sua própria imagem (Santos, 2002).
Emerson Dutra Filho
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