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Black Mirror: Interpretação do episódio “Queda Livre” à luz da Psicologia Institucional

Atualizado: 25 de ago. de 2019

“Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização, por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização.” (FREUD, 1930, p. 73).

A contextualização social, incluindo elementos éticos, políticos, culturais e psicológicos, faz-se presente e influenciadora nos meios de convívio e comportamento dos indivíduos que dela fazem parte. O homem como um ser social não deve ser analisado como peça esclusa de tal contexto, e para sua análise é necessário levar em conta desde suas relações mais imediatas até aquelas que permeiam seus meios de vida mais distantes.

O presente trabalho é uma análise do episódio "Queda Livre" da 3ª temporada da série Black Mirror, através das obras do autores Enrique Pichon-Rivière, José Bleger, Sigmund Freud e René Kaës. Ele foi apresentado na disciplina de “Psicologia Institucional”, ministrada pela professora Mestre Walcylene Castilho de Araújo, no 5º semestre do curso de Psicologia, e na XVIII Mostra de Produção Científica do UNISAL (Centro Universitário Salesiano de São Paulo - Unidade São Joaquim).

TEORIA DO VÍNCULO


Pichon-Rivière (1988, p.37), traz a ideia de que o indivíduo é uma resultante do processo dinâmico que ocorre dentro do grupo no qual está inserido. Para o autor, o movimento é o que faz o grupo ser saudável. Seguindo suas ideias, os indivíduos constantemente estabelecem vínculos, desde seu nascimento, o que realça a importância na vida dos seus pertencentes; principalmente por estar relacionado com a noção de papel, status e a comunicação entre eles. Segundo Soares e Ferraz (2007, p. 53), esses vínculos podem ser chamados de redes de relações. No episódio é possível observar a influência que o grupo exerce na vida dos indivíduos pertencentes a ele. Lacie, a personagem principal, parece estar inserida num mundo que é determinado pelo seu grupo. Logo de início se percebe uma padronização da vida de acordo com a forma com a qual a sociedade determina que as pessoas devem viver. Nesse mundo, as casas e os carros são todos semelhantes e da mesma cor. As relações são superficiais, nos atendimentos, no trabalho e nas conversas em geral, de tal modo que as pessoas devem agir sempre com um "bom comportamento", para receberem uma boa avaliação.

O vínculo, segundo Pichon-Rivière, implica fortemente em toda a personalidade dos indivíduos, como pode ser percebido visto que Lacie, de início, está sempre tentando se encaixar nesse modo de vida, seguindo as recomendações dos outros de como deve se comportar para que tenha uma boa avaliação. Ela segue essa padronização, a estereotipa do grupo, expressa na cristalização do comportamento e na resistência à mudança.

As transferências ou assunção de papéis, segundo Pichon-Rivière, ocorrem de maneira muito abrangente, que apontam para essa reprodução estereotipada das situações vividas pelo grupo. Aqui se observa também a grande horizontalidade que é descrita pelo autor, e retomada por Soares e Ferraz (2007), que fazem parte das relações próprias do grupo, influenciadora na vida de seus pertencentes, em sua ação e interação, e que influencia fortemente Lacie no início. Posteriormente a personagem, ao agir com sua verticalidade, seus próprio pensamentos e opinião, a partir de sua história de vida, foi estigmatizada e excluída pelo social, já que não tinha mais um comportamento considerado aceitável.

O seu irmão entra então em cena. Ele parece ter uma maior verticalidade, visto que se volta mais para as próprias questões, e parece não se importar com essas avaliações, mas se preocupa com essa vida de aparências, na qual sua irmã fica muito envolvida tentando se adequar. Durante algumas cenas ele aparece tentando mostrar isso a irmã, de tal forma que podemos perceber nele um porta-voz do grupo, segundo a teoria do vínculo de Pichon-Rivière. O porta-voz, para o autor, como mostram Soares e Ferraz (2007), é aquele que está mais consciente sobre os processos que estão ocorrendo no grupo, e fala sobre eles, que até então permaneciam latentes ou implícitos. Lacie, no entanto, ainda parece não se importar com isso e prefere buscar melhor avaliação, diferente da baixa de seu irmão. Outra porta-voz que aparece no episódio é a caminhoneira, com também uma maior verticalidade, que chama a atenção de Lacie para o que ocorria dentro dessa vida padronizada, quando conta a ela o motivo de sua baixa avaliação, que vem quando ela para de tentar se encaixar na sociedade e começa a “ser ela mesma”, a agir conforme desejava, e não pelas aparências, das quais vivia antes.

No final, Lacie acaba presa. Mas esse ato foi de grande importância para a protagonista. Foi quando ela também se tornou consciente dos conteúdos que estavam implícitos no grupo que tentava se encaixar. Ela percebe aqui os processos envolvidos, e não quer mais participar deles, como os porta-vozes citados. Ela aceita sua personalidade, se volta mais para sua verticalidade e passa a agir com mais autenticidade, deixando a estagnação da padronização.

Lacie demonstra conseguir realizar a espiral dialética de Pichon-Rivière, também comentada no artigo de Soares e Ferraz (2007, p. 54), visto que ela se torna mais consciente e flexível quanto aos seus papéis, rompendo com estereótipos anteriores. Ela deixa a resistência em querer se encaixar no grupo e o seu medo de mudança, percebendo esses conteúdos que estavam implícitos e latentes, os tornando explícitos, de tal maneira que ela se vê consciente desses conteúdos, dos papéis, e rompe assim com a estereotipia. Ela se movimenta.

PSICO-HIGIENE E PSICOLOGIA INSTITUCIONAL


Bleger (1984) propõe que a atuação do psicólogo deve passar da atividade psicoterápica, de curar patologias, para a “abrangência social, transcendência e significação” (p. 40), conceituando a Psico-Higiene que propõe a melhor organização de condições que promovam a saúde e o bem-estar dos integrantes da instituição, partindo do enfoque individual para o social. Sendo que o papel do psicólogo é o de ser um técnico das relações interpessoais, dos vínculos humanos, tendo como papel a conscientização do que é implícito; ajudando na compreensão, através do estudo dos fatores psicológicos que estão em jogo na instituição, sendo um agente de mudança e promovendo a maior autonomia aos integrantes. É importante, segundo o autor, considerar que toda a vida dos seres humanos transcorre nas instituições, e que nessa investigação institucional tanto o objeto de estudo quanto o investigador são modificados.

Bleger considera duas concepções de instituição propostas por Fairchild em seu “Dicionário de Sociologia”, que são: “Configuração de conduta duradoura, completa, integrada e organizada, mediante a qual se exerce o controle social e por meio da qual se satisfazem os desejos e necessidades sociais fundamentais”; e “Organização de caráter público ou semi público que supõe um grupo diretório e, comumente, um edifício ou estabelecimento físico de alguma índole, destinada a servir algum fim socialmente reconhecido e autorizado - asilos, universidades, orfanatos, hospitais, etc.” (p. 37).

Consideramos a primeira definição com um sentido mais abrangente que nos faz transpor a concepção de um local específico determinado geograficamente com um pequeno número de pessoas que “dão as ordens”, considerando a ideia de conduta duradoura sobre a qual se exerce o controle social. Nesse sentido poderíamos pensar as redes sociais como uma instituição “virtual” que exerce influência e determinado controle sobre os indivíduos através da participação e incentivo dos mesmos. Como é apresentado na série, onde através do aplicativo de redes sociais eles encontram uma maneira de investigar a vida das pessoas, com um histórico de suas postagens e de seus “likes”, representado pela pontuação de 5 corações, quase como uma escala likert, sendo que apenas um ou dois corações diminuem a consideração daquele indivíduo. Temos, pois, uma instituição sem um local determinado e sem um “diretor” responsável, exercendo seu poder através do envolvimento “online” de seus integrantes. No entanto, essa “instituição de reconhecimento social” é utilizada no episódio por diferentes instituições, como pelas agências de imóveis, companhias aéreas, delegacia; como as instituições propostas por Burgess e Young (citados por Bleger, 1984).

Segundo Bleger: “O ser humano encontra nas distintas instituições um suporte e um apoio, um elemento de segurança, de identidade e de inserção social ou pertença” (p. 55), onde ele afirma que as instituições formam parte da personalidade dos indivíduos. Podemos nos perguntar até que ponto essa necessidade de ser reconhecida pelas redes sociais influenciou os comportamentos da personagem.

Quando a protagonista passa por imprevistos para chegar ao casamento da amiga e começa a ser sincera com as pessoas passa a ter sua pontuação baixada, e perde um assento no avião, preferência por alugar bons carros e caronas na estrada. Passa então a ficar cada vez mais clara a forma como as instituições e a sociedade se organizam, privilegiando aqueles que são socialmente reconhecidos e economicamente mais bem sucedidos.

Outra afirmação do autor é que:

“Toda instituição tem objetivos explícitos, tanto quanto objetivos implícitos ou, em outros termos, conteúdos manifestos e conteúdos latentes” (p. 41).

Percebemos no episódio que os motivos explícitos para a utilização desse aplicativo social poderia ser o de facilitar a vida das pessoas, através do qual poderiam ter acesso a um histórico que lhes informava o trabalho de determinado indivíduo, sua rede de contatos, seu reconhecimento; promovendo assim bons comportamentos e boas relações, incentivando as pessoas a entrarem nesse padrão “civilizado” e as motivando a buscar essa “harmonia social”. No entanto, como objetivos implícitos percebemos a repressão e a segregação, numa possibilidade de separar os “bons” dos “maus”, o joio do trigo, e de identificar aquelas pessoas que são “confiáveis” e bem sucedidas. Num ciclo muitas vezes vicioso, em que os populares ficam cada vez mais populares e os que não se encaixam no padrão esperado ficam cada vez mais estigmatizados. As instituições, segundo Bleger, tendem a reprimir e segregar refletindo a própria sociedade.

Percebemos, na sociedade proposta pelo episódio, as estereotipias, como defesas para evitarem conflitos. No entanto, Bleger alerta que a ausência de conflitos não demonstra o grau de dinâmica das instituições, sendo que as patologias surgem da ausência de recursos para explicitar os conflitos e lidar com eles. Encontramos a resistência por parte da maioria das pessoas nesse episódio sempre que alguém sai do esperado, sendo como resposta padronizada apenas a má qualificação na rede virtual.

Bleger argumenta que: “Quanto mais integrada a personalidade, menos depende do suporte que lhe presta uma dada instituição; quanto mais imatura, mais dependente é a relação com a instituição e tanto mais difícil toda mudança da mesma ou toda separação dela. Desta maneira, toda instituição não é somente um instrumento de organização, regulação e controle social, mas também, ao mesmo tempo, é um instrumento de regulação e de equilíbrio da personalidade (...)” (p. 55); sendo que, segundo ele:

“Uma fonte de infelicidade e distorção psicológica dos seres humanos na instituição se baseia na estrutura alienada das instituições, relacionada com a mesma estrutura alienada de todo o sistema de produção e distribuição de riquezas.” (p. 56).

Quando Lacie conversa com a caminhoneira reconhece que faz parte de um “joguinho de números”, mas que precisa dele para conquistar o que deseja; podemos perceber nesse momento conteúdos inconscientes ou implícitos que passam a se tornar conscientes e serem expressos. Ela se desculpa por ser grosseira com a senhora e chama-la de “velha”, a qual a mesma responde que não lhe dará uma nota baixa, talvez com a intenção de incentiva-la a que fosse mais honesta consigo e com os outros.

Segundo Bleger, geralmente os conflitos de que se tem queixa encobrem os “verdadeiros conflitos”. Lacie demonstra motivos explícitos pelos quais estava indo ao casamento, pois amava sua amiga “Ney, ney” e queria deixa-la feliz. No final, no entanto, percebemos as motivações implícitas e inconscientes se tornando explícitas e conscientes, em que ela percebe que sempre teve inveja de Naomi e que estava ali apenas para aumentar sua popularidade para que conseguisse alugar o imóvel que tanto desejava.

Segundo Bleger, uma “(...) mudança institucional radical só pode se dar com certa consciência prévia, quer dizer, com uma certa mudança prévia da estrutura da personalidade”. Por isso não é fácil mudarmos as instituições e a própria sociedade, pois para isso se faz necessário modificar a estrutura da personalidade de seus integrantes. A reflexão do episódio é interessante pois não é muito diferente de aspectos que fazem parte da nossa sociedade e da nossa própria realidade, como é o caso das redes sociais, como o Facebook ou Instagram por exemplo.

Segundo Bleger: “Toda instituição é o meio pelo qual os seres humanos podem se enriquecer ou se empobrecer (...)” (p. 57). Resta-nos questionar até que ponto nossa própria sociedade não dispõe de estratégias de discriminação e exclusão, quando por exemplo, pessoas da classe mais pobre e desfavorecida padecem nas filas esperando uma consulta, exame ou cirurgia, como é exemplificado pelo marido da caminhoneira que perdeu um tratamento experimental pela mera diferença de 0,01 em sua pontuação. E em como podemos superficializar nossas relações e deixar de aproveitar bons momentos com a preocupação de tirar fotos e postar a tempo real o que estamos fazendo pra que outras pessoas nos “curtam” e aprovem.

O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO


Na obra de 1930 “O mal-estar na civilização”, Freud, a partir do ponto de vista psicanalítico, faz uma análise de qual é o preço e consequências que a cultura e sociedade cobram de cada um de nós. Basicamente, em prol de ideais culturais e em nome da sociedade, os indivíduos adiam ou até mesmo abrem mão de suas satisfações instintuais (p. 45, 57). Além disso, há um acréscimo de sentimento de culpa (p. 92). Entretanto, ao passo que, por um lado, sua satisfação é adiada, o homem recebe da sociedade uma medida de proteção que seus selvagens e primitivos antepassados não tinham (p. 82). Também dispõe de meios tecnológicos e de dominação dos recursos naturais para sua sobrevivência.

Entretanto, apesar de inibidos na meta os instintos libidinais, ainda assim estes encontram uma manifestação que, sem surpresa, atendem à uma necessidade da civilização.

De acordo com Freud, os instintos inibidos na meta já não podem encontrar sua meta original de satisfação sexual, porém unem as pessoas através da ternura, como em amizades, por exemplo, ou através de laços familiares (p. 65). Outra forma de fortalecer o vínculo social é pela identificação dos membros entre si, o que impede que fatores de individualidade que poderiam levar indivíduos à liderança intelectual não se sobressaiam, gerando o que Freud chamou de miséria psicológica das massas (p. 83).

Seus impulsos à liberdade e agressivos são restritos pela civilização, que se utiliza de diversos meios para limitá-los. Na luta para obter alguma satisfação, pode ser que alguma forma de reivindicação seja atendida, ou o mais comum e mais bem aceito pela civilização é de que haja algum ganho ou avanço em termos culturais. Assim como a agressividade primitiva contra as figuras paternas pode gerar um sentimento de culpa, este sentimento, a partir da aquisição de um Super Ego sempre vigilante em punir, dirige o sentimento de culpa contra o indivíduo. Isso se dá porque existem medidas em sociedade que limitam o instinto agressivo que seria dirigido ao mundo externo e que agora tem uma parte dirigida ao próprio indivíduo, aumentando a autodestruição. Em sociedade, existe um medo social que funciona através do mesmo mecanismo que na infância inibe a criança de dirigir sua agressividade contra o pai. Agora, se pratica o mal, o medo é de ser descoberto por aqueles que podem aplicar uma punição ou qualquer forma de retaliação, como seus amados, seus companheiros ou instituições sociais.

Ainda assim, a frustração de não poder dirigir ao mundo exterior seu instinto agressivo permanece e a frustração continuará para sempre com o indivíduo, diminuindo ocasionalmente com satisfações que conseguirá com muito custo. Entretanto, o interesse primeiro da civilização é criar e fortalecer unidades e núcleos sociais, depois disso, caso haja possibilidade, vem a felicidade individual. Nesse meio termo, o Super Eu agora elevado à esfera social supões que o Eu individual tem domínio irrestrito sobre seu Id e não se importa com suas reivindicações.

Relacionando com o episódio do seriado, conhecido por apresentar diferentes alternativas de um futuro distópico onde a tecnologia representa perigo para o homem e suas relações, vemos um exemplo de funcionamento das relações sociais cuja manutenção é feita através de um aplicativo onde as pessoas são avaliadas por seus bons modos, boa convivência, educação, classe social e etc. Através desse aplicativo, ficam ainda mais explícitas as atitudes que fortalecem a civilização e a mantem. De certa forma, a iminência de ser avaliado a qualquer momento e o fato de essa avaliação somar num total que estará visível para todos, força o indivíduo à agir de forma a agradar e ser invejado por todos, mesmo que as atitudes que levam a isso sejam muitas vezes contrárias ao que os protagonistas realmente sentem.

A protagonista do episódio é uma mulher que almeja adquirir mais aceitação social e que para isso se sujeita a situações um tanto constrangedoras. Ao passo que na teoria freudiana, abrimos mão de muitas satisfações instintuais, isso fica muito mais explícito na trama do episódio, onde a atitude tomada pela protagonista não condiz em nada com seus reais sentimentos e problemas. A série de acontecimentos que a levam à uma queda livre na pontuação do aplicativo arruínam qualquer possibilidade de ascensão social, na verdade a eliminam do meio social, já que ela é presa.

Quando a regra é explícita, também o sentimento de frustração salta aos olhos. Os meios de obter uma boa pontuação no aplicativo são rígidos e devem saber agradar a todos, pois qualquer um é um avaliador. Assim, a qualquer momento uma avaliação negativa poderia ser atribuída e a protagonista sofreria com as penas sociais da vergonha, impedimento de frequentar determinados círculos da alta classe e até de adquirir imóveis.

O Super Ego da esfera social ali está à mão de cada indivíduo, sempre mostrando em níveis de pontuação seu desempenho nas relações sociais. Uma outra protagonista já idosa e viúva, é cética quanto ao funcionamento não apenas do aplicativo, que permeia toda a sociedade, mas também não se importa com a avaliação que os outros fazem dela. O resultado, como visto, é que ela vive isolada dos outros e em condições ruins.

O desfecho do episódio é trágico. Bêbada e desacreditada daquele sistema de avaliações a personagem Lacie protagoniza um vexame na festa de casamento de sua tão bem conceituada amiga de infância, festa que seria a oportunidade ideal para alavancar sua boa avaliação e assim subir em níveis sociais. Tal situação a leva à prisão e a ser excluída da comunidade de avaliação através do aplicativo. Assim a fictícia sociedade do Super Eu tecnológico a cospe, peça que já não é mais útil para seu sustento, que quebrou suas regras de convivência e ultrapassou sua ordem natural de acontecimentos. Uma vez presa e desvinculada de qualquer forma de avaliação ou punição social, ela encontra um outro indivíduo, com o qual tem uma discussão ridiculamente engraçada, onde amigável, sincera e inofensivamente se agridem, e assim o episódio termina num satisfatório e invejável momento de catarse.

Sem identificação com seus iguais, sem uma boa conceituação e agindo agressivamente, o episódio demonstra, pelo fim da trama da protagonista, mesmo em situações fictícias, como há uma instancia social vigilante, da qual somos parte e que esteve antes de nós e continuará também após. Fortalecemo-la por agir de acordo com suas expectativas e abandonar nossas mais inerentes necessidades em seu benefício. Independer dela pode ser impossível. Abandoná-la pode ser desastroso.

REALIDADE PSÍQUICA E SOFRIMENTO NAS INSTITUIÇÕES


Segundo Kaës (1991) a instituição é uma formação da cultura e da sociedade. “A instituição é o conjunto das formas e das estruturas sociais instituídas pela lei e pelo costume: a instituição regula nossas relações, preexiste e se impõe a nós: ela se inscreve na permanência” (p. 25). Segundo ele, cada instituição é dotada de uma finalidade que a distingue e identifica. Ele afirma que: “A tarefa primária da instituição alicerça a sua razão de ser, a sua finalidade, a razão do vínculo que ela estabelece com os seus sujeitos”. Mas a tarefa primária pode não ser a mesma a que se dedicam “constantemente” os membros da instituição, sendo que, outras tarefas podem se tornar dominantes em concorrência ou contradição com a primária, a ponto de ocultar ou inverter o seu sentido. Podemos perceber, no decorrer do episódio, que a aparente tarefa primária em relação ao aplicativo parecia ser a de manter boas relações sociais e promover o convívio harmonioso e os bons costumes entre as pessoas. No entanto, notamos no decorrer da história, que as instituições utilizam desse aplicativo para segregar, punir e excluir aqueles que não se adequam ao padrão pré-estabelecido e esperado pela sociedade.

O autor aponta riscos psíquicos em nossa relação com a instituição, entre eles, a “massividade dos afetos”, “discussão obnubilante e repetitiva de ideias fixas”, “paralisia da capacidade de pensamento” (p.22), sendo que “sofremos por não conseguir que a singularidade da nossa fala se faça conhecer” (p. 20). Segundo Kaës “As ciências humanas nascem do questionamento (...) de que o homem não é mais a medida de tudo, mas se vê tomado e manipulado por forças de maior envergadura: a economia, a linguagem, o inconsciente, a instituição” (p. 21). Na trama o sistema social, político e econômico é influenciado pelo aplicativo utilizado, afetando a vida de todos os indivíduos. Percebemos no episódio, como Lacie tem, no início, seus comportamentos direcionados e condicionados em busca de aceitação e reconhecimento, em como sua personalidade estava fundamentada em expectativas sociais. Notamos como ela sofre as consequências ao deixar de agir em função do que os outros esperam dela, quando sua singularidade passa a expressar-se, apesar de toda a desaprovação com que é punida.

Segundo Kaës: “A instituição liga, une e gerencia formações e processos heterogêneos quer sejam sociais, políticos, culturais, econômicos, psíquicos” (p. 30). Sendo que essas formações e processos influenciam e afetam a própria instituição e os seus indivíduos. O autor aponta como crise da modernidade o fato das instituições já não realizarem a sua função principal de continuidade e de regulação. “Ora, as instituições, assim como as civilizações por ela sustentadas, não são imortais. A ordem que impõem não é imutável, os valores que proclamam são contraditórios e elas negam aquilo que lhes serve de base” (p. 22). Kaës afirma que a instituição pode fazer coincidir lógicas diferentes a fim de encobrir seu caráter conflitante, no entanto o recalque pode emergir e revelar as lógicas dissimuladas, sendo que os efeitos da instituição ao ser atacada repercutem no indivíduo singular. Percebemos a emersão desses conteúdos que estavam implícitos e latentes no discurso de Lacie no casamento, sendo que os efeitos de sua fala geram resistência frente aqueles que fazem parte do sistema criticado e necessitam dele para estruturarem sua personalidade e suas relações, gerando como consequência a prisão e isolamento da personagem principal. Podemos associar a prisão de Lacie ao recalque de conteúdos que são insuportáveis demais para serem reconhecidos pela massa social.

Segundo o autor sofremos por conta da nossa relação com a instituição, sofremos devido ao seu excesso, falha ou inadequação. Sofremos devido a relações assimétricas, desiguais, sofremos devido à restrição pulsional, devido ao sacrifício dos interesses do Eu, devido aos “entraves” frente à capacidade de pensar, refletir e questionar a ordem estabelecida. O autor afirma que a instituição possui mecanismos de defesa contra as mudanças; mecanismos que mantêm o recalque, fazem “calar as diferenças”, e são destinados a manter a permanência, o direito e a ordem.

Segundo Kaës existe uma quarta ferida narcísica, além daquelas abertas por Copérnico, Darwin e Freud; a ferida da descoberta de que não existe apenas um inconsciente pessoal, mas uma parte do nosso inconsciente e da nossa identidade que é composta e pertence às instituições. Segundo ele existe uma dimensão psíquica da instituição, sendo que “(...) a instituição nos precede, nos determina e nos inscreve nas suas malhas e nos seus discursos” (p.20). A instituição nos estrutura, e através de suas relações é sustentada a nossa identidade, sendo que, segundo o autor, uma parte do nosso Sefl está “fora de si mesma”, não nos pertence.

Existe, pois, um espaço psíquico da vida institucional, além da realidade psíquica do indivíduo existe a realidade psíquica do conjunto, do qual fazem parte processos psíquicos inconscientes, pois não somos formados somente por nossa singularidade, mas também por nossa grupalidade. Podemos relacionar esses conceitos com os conteúdos implícitos e latentes propostos nas instituições por Pichon-Riviére e Bleger. O autor distingue o imaginário individual do imaginário social, sendo que o segundo está na origem das instituições e na base da alienação, definida por ele como o “momento em que o instituído domina o instituinte”. Podemos associar, infelizmente, em nossa atualidade, que muitas instituições tendem a punir e “conter” aqueles indivíduos que apresentam discursos diferentes e questionam a ordem apresentada. O episódio nos faz refletir pois reflete uma realidade excludente da qual fazemos parte e que pune a diversidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS


Como visto, associando conhecimentos teóricos que aprendemos durante a formação acadêmica em Psicologia, com as artes, incluindo literatura e manifestações culturais, neste caso, o seriado Black Mirror, podemos demonstrar como o aprendizado se torna mais prazeroso, e a assimilação dos conceitos assume uma compreensão mais próxima da nossa realidade, como se a compreendêssemos de uma forma prática.

Podemos notar que analisar a vida social aliada à tecnologia é extremamente pertinente: os mecanismos de vínculos e redes de relações ficam ainda mais identificáveis, ajudando até mesmo na manutenção e perpetuação dos mesmos. Após as análises propostas percebemos que a vida em sociedade está permeada pelas relações que os indivíduos estabelecem uns com os outros e com o meio, de tal modo que essas relações exercem uma grande influência na vida desses sujeitos, determinando os seus caminhos; não importando a visão que se tome, visto que, ainda que tomando ideias diferentes, de diferentes autores a respeito do ser humano, ambas visões desembocam para esta conclusão. O episódio aqui debatido, que apresenta uma realidade distópica da moderna sociedade, e as teorias citadas, proporcionam uma análise crítica sobre as formas de vínculo e relacionais atuais, ao passo que desnudam os mecanismos que determinam para além da psique individual, a coletividade social.


Emerson Dutra Filho

Tatiane Confaloni

Tiago de Sousa Medeiros


REFERÊNCIAS


BLEGER, J. Psico-Higiene e Psicologia Institucional. Tradução de Emilia de Oliveira Diehl. Porto Alegre, 1984. p. 37-69.


FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização, Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise e Outros Textos. Tradução de Paulo César de Souza. Companhia das letras. 1930-1936. p. 1-496.


KAËS, R. Realidade psíquica e sofrimento nas instituições. In:____. A instituição e as instituições: estudos psicanalíticos. Tradução: Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991, p. 19-58.


PICHON-RIVIÈRE, E. Teoria do Vínculo. Tradução de Elaine Toscano Zamikhouwsky. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 7-85.


SOARES, S. M.; FERRAZ, A. F. Grupos operativos de aprendizagem nos serviços de saúde: sistematização de fundamentos e metodologias. Esc. Anna Nery vol.11 no.1 Rio de Janeiro Mar. 2007. p. 52-57. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452007000100007> Acesso em 09 ago. 2018.

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