O presente trabalho é uma análise do filme “O guardião de memórias” (2008), uma produção da Sony Pictures, dirigido por Mick Jackson, através da obra “Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada” de Goffman (1963) e do artigo de Siqueira e Cardoso (2011) que discutem o conceito de estigma através do livro de Goffman e da literatura norte-americana. Esse trabalho foi apresentado à disciplina de “Psicologia, Deficiência e Inclusão Social” do 7º semestre do curso de Psicologia.
A história do longa-metragem se passa em 1964, período em que o médico ortopedista David Henry realiza o parto de sua esposa Norah, ela dá a luz a gêmeos, um menino e uma menina, sendo que a menina nasce com Síndrome de Down. David, entretanto, entrega a menina à enfermeira Caroline e pede que a mesma a deixe em um abrigo, dizendo a esposa que a segunda criança veio a óbito. Caroline, entretanto, ao chegar ao abrigo desiste de entregar a recém-nascida e decide adotá-la.
Segundo Goffman (1963) a sociedade cria pré-concepções e expectativas normativas referente a como as pessoas deveriam ser, categorizando os atributos que são considerados normais e naturais, o que ele conceitua como “identidade social virtual”, diferente das características, habilidades e potenciais que as pessoas realmente possuem, o que ele conceitua como “identidade social real.” Siqueira e Cardoso (2011), baseados em sua obra, afirmam que um estigma é um processo construído socialmente: “o processo de estigmatização não ocorre devido à existência do atributo em si, mas, pela relação incongruente entre os atributos e os estereótipos” (p. 96). Segundo Becker e Arnold (1986, apud SIQUEIRA; CARDOSO, 2011), estigma é uma condição de não possuir atributos considerados importantes por um determinado grupo social. Percebemos na trama, que David se baseou em uma identidade social virtual julgando sua filha pela deficiência com a qual ela nasceu em detrimento da realidade e de quem ela poderia vir a se tornar através de sua subjetividade e de suas potencialidades.
Goffman (1963) apresenta através do termo estigma um conceito mais abrangente que inclui além das deficiências e deformidades físicas, as culpas de caráter e os estigmas tribais de raça, nação e religião. Segundo Siqueira e Cardoso (2011), a maioria das diferenças entre as pessoas são ignoradas e socialmente irrelevantes, no entanto, algumas diferenças são “socialmente selecionadas” (LINK; PHELAN, 2001). As pessoas estigmatizadas são, pois, reduzidas a seu estigma, como se fosse o único atributo que possuem, desconsiderando sua personalidade, suas demais características, virtudes, sem possuir uma visão holística enxergando a totalidade do seu ser. Percebemos no filme, e em nossa própria realidade, como as pessoas estigmatizadas podem ser excluídas socialmente e “despejadas” em um determinado lugar, como, por exemplo, o abrigo para pessoas deficientes no qual Caroline decide não deixar a menina.
Segundo Goffman (1963) a sociedade cria “uma teoria do estigma”, uma ideologia para explicar a inferioridade das pessoas que possuem um estigma e para justificar a rotulação e o processo de estigmatização, tendo assim, o “controle do perigo” que o estigmatizado representa; em alguns casos até levando a crença de que aquele que possui um estigma não é nem sequer humano. Essa ideologia é utilizada para manter o poder e o modelo social vigente. Revelar as semelhanças que pessoas não deficientes têm com outras pessoas com deficiência, pode revelar também a fragilidade da postura de perfeição adotada que é velada sob o nocivo manto do estigma que se coloca sobre os diferentes. Podemos perceber, como exemplo do perigo que essa ideologia representa, ao lembrarmos do nazismo, que apoiava o “darwinismo social” e a hegemonia de raças, e cujos assassinatos em massa começaram entre os próprios alemães, matando aqueles que possuíam deficiências, transtornos mentais, doenças graves, entre outros estigmas.
“Estigmatização é uma condição totalmente incerta de acesso ao poder social, econômico e político, o que permite a identificação das diferenças, a construção de estereótipos, a separação de pessoas rotuladas dentro de uma categoria, o desaprovar, a rejeição, a exclusão e a discriminação.” (LINK; PHELAN, 2001, apud SIQUEIRA; CARDOSO, 2011, p. 98).
Percebemos na trama, que Caroline luta contra o estigma social ao exigir que a escola receba sua filha; mas notamos, que ela também é tomada por ele, como por exemplo, quando se coloca desfavorável ao namoro da filha e seu sonho de se casar e ter filhos. Consideramos na relação entre identidade virtual e real, embora ambas se afetem, o perigo da primeira determinar a segunda e condicioná-la, deteriorando sua identidade social para que a pessoa se adapte ao lugar que se espera que ela ocupe. Stafford e Scott (1986, apud SIQUEIRA; CARDOSO, 2011) apresentam o conceito de estigma como sinônimo de desvio, como uma violação das normas, sendo a prática estigmatizante um objeto do controle social. Os autores também alertam para o fato da pessoa estigmatizada poder ser tolerada, mas não aceita plenamente. “As pessoas estigmatizadas são desvalorizadas porque não se constituem pessoas ideais dentro das normas sociais, e assim, tornam-se objetos do controle social, o qual propicia uma limitação em suas relações sociais.” (SIQUEIRA; CARDOSO, 2011, p. 101).
“Cada sociedade tem mecanismos de controle social para garantir que a maioria de seus membros conforme-se com essas normas. As pessoas que não se conformam com essas regras ou quebram os tabus sociais são excluídas socialmente” (BECKER; ARNOLD, 1986, apud SIQUEIRA; CARDOSO, 2011, p. 99).
Segundo os autores alguns comportamentos ou atributos podem ser universais quando se relacionam ao estigma, assim como outros podem ser específicos de uma cultura, conforme o significado social atribuído num determinado contexto histórico. Crocker & Major (1989, apud SIQUEIRA; CARDOSO, 2011), afirmam que as pessoas estigmatizadas podem ser mais bem tratadas quando não são responsáveis pelo seu estigma, como podemos citar o exemplo da jovem com Síndrome de Down, que já nasceu com essa condição, sem que isso desconsidere suas dificuldades e o sofrimento provindo do meio externo.
Segundo Goffman (1963) há diversas formas de um indivíduo estigmatizado relacionar-se com a realidade: alguns são indiferentes e não sofrem com seu estigma, outros obtém “ganhos secundários”, e outros se isolam, tornando-se inseguros e/ou agressivos. Alguns indivíduos estigmatizados podem construir repertórios que são completamente dissonantes de sua verdadeira personalidade ou comportamento, apenas para se afastarem o máximo possível de uma situação em que ressalte seu estigma perante os olhos de outros. Segundo Siqueira e Cardoso (2011) quando o estigmatizado se relaciona com pessoas que não lhe proporcionam respeito e consideração, ele tenta “corrigir seu defeito” e modificar seu ego para adaptar-se à realidade. Os referidos autores vão discutir o autoconceito, afirmando ser um processo social, que envolve a visão de si através do olhar dos outros, afetando a autoestima. Eles afirmam que o fato de um estigma ser incorporado ao autoconceito de um indivíduo depende de sua subjetividade. O autoconceito está ligado as descrições e atributos dados a um sujeito, e que são adquiridos através das relações com outras pessoas e das interpretações que elas fazem desse sujeito. Percebemos como importante fator de proteção a relação que Phoebe mantinham com sua mãe adotiva Caroline, que contribuiu para seu autoconceito positivo e sua autoestima.
Segundo Siqueira e Cardoso (2011) existem possibilidades de mudanças na percepção de estigmas no decorrer da vida, em especial quando se tem um contato próximo com alguém estigmatizado, seja ela um parente ou amigo por exemplo. Tal possibilidade citada pelos autores, chama a atenção também para a necessidade de inclusão para pessoas com deficiência em escolas ou empresas, por exemplo, promovendo uma oportunidade de repensar o lugar que tais indivíduos devem ou não ocupar e o quanto desse lugar é ditado e conservado pelos estigmas sociais. Ainlay, Coleman & Becker (1986, apud SIQUEIRA; CARDOSO, 2011), afirmam que o estigma tem efeito sobre a subjetividade da pessoa, mesmo ela não tendo um estigma direto, mas sendo próxima de alguém que é estigmatizado, como percebemos no julgamento e dificuldades vivenciadas por Caroline.
Para Martin (1986, apud SIQUEIRA; CARDOSO, 2011), a aprendizagem social se expande e se modifica ao longo do desenvolvimento, sendo que nos primeiros anos de vida de um indivíduo o seu sistema de crenças é mais maleável. Percebemos que o conceito de David sobre sua filha pode ter sofrido mudanças no decorrer da trama, como quando ele fica observando-a de longe e a segue em sua ida a escola, tentando se aproximar dela. Siqueira e Cardoso (2011) discutem a nossa responsabilidade sobre a perpetuação dos estigmas, ao afirmarem que as pessoas que compõem a sociedade são responsáveis por esse processo de estigmatização. Esse processo, segundo eles, é influenciado pelas relações das gerações anteriores através da aprendizagem social, que muitas vezes perpetuamos sem termos consciência dessas determinações. “Nós, às vezes, paramos de nos perguntar o motivo que pensamos e nos comportamos de tal forma, nós fazemos isso porque a cultura é um extenso processo inconsciente” (BECKER; ARNOLD, 1986, apud SIQUEIRA; CARDOSO, 2011, p. 100). O estigma é, destarte, criado e perpetuado através da aprendizagem social, que molda e determina a percepção da realidade, em que as próprias pessoas estigmatizadas aprendem os comportamentos que são esperados delas. Encontrar-se inserido numa sociedade que apresenta tal instrumento de regulamentação social, não é uma escolha nem de indivíduos com deficiências e nem de indivíduos sem deficiência, mas podemos chamar a atenção para situações ou condições do cotidiano, por pequenas que sejam, que acabam por fazer a manutenção dos estigmas sociais e alertar em direção a uma consciência sobre nossos atos que podem ser diferentes dos já adotados, em vista de maior igualdade. Se os estigmas são socialmente construídos de acordo com o contexto cultural, social e histórico, eles podem ser questionados e superados através de nossa atuação e comprometimento profissional. Percebemos no final do longa metragem, o encontro de Phoebe com sua mãe e irmão biológicos, e em como foi para ela tão natural entender a nova situação que lhe foi apresentada.
Emerson Gonçalves Dutra Filho
Tiago de Sousa Medeiros
REFERÊNCIAS:
GOFFMAN, Erving. (1975). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução: Mathias Lambert. Rio de Janeiro: LTC, 1963, 124 p.
O GUARDIÃO DE MEMÓRIAS. Direção de Mick Jackson: Sony Pictures, 2008, 90 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YK2NUELtLFE> Acesso em 18 mai. 2019.
SIQUEIRA, Ranyella de; CARDOSO, Hélio. O conceito de estigma como processo social: uma aproximação teórica a partir da literatura norte-americana. São Paulo, Imagonautas: revista Interdisciplinaria sobre imaginarios sociales, ISSN-e 0719-0166, Vol. 1, nº. 2, 2011, págs. 92-113. Disponível em: <https://repositorio.unesp.br/handle/11449/127032?locale-attribute=en> Acesso em 18 mai. 2019.
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