Psicologia das Massas
- universitariospsic
- 13 de fev. de 2019
- 21 min de leitura
Em um momento conflituoso da nossa história, em que discursos xenofóbicos, racistas, machistas, homofóbicos, elitistas, autoritários e preconceituosos afloram com intensidade, retomando força através de expressões de ódio e intolerância, propagadas em diversas mídias sociais e através do aumento de casos de violência infligidos em decorrência da cor da pele, do sexo, da classe social, da origem étnica, do partido político, da religião, da orientação sexual ou da identidade de gênero, ou por qualquer outra mínima diferença que nos faça esquecer o fato de sermos membros de uma mesma espécie; faz-se importante discutir a formação da Psicologia dos grupos, e em como somos influenciados e determinados por condições e aspectos que estão além da nossa aparente consciência; razões mergulhadas em profundezas obscuras e inconscientes que jazem muito abaixo da ponta do iceberg, e que seguimos propagando, sem nos questionarmos, enquanto perpetramos os mesmos erros que nossos pais e antecessores cometeram na construção da civilização e da história da humanidade. Essa postagem traz um resumo da obra “Psicologia das Massas e Análise do Eu” escrita por Freud em 1921, e que se mostra, quase um século depois, ainda tão pertinente a ponto de nos fazer questionar as realidades e instituições das quais fazemos parte, bem como inquirirmos a nós mesmos. Vale considerar que esse texto foi escrito por um estudante de Psicologia, e que existem divergências em conceitos psicanalíticos, que, conforme a tradução das obras freudianas, assumem significados diferentes, como pulsão por instinto e recalque por repressão.

Freud, em seu texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921), afirma que a psicologia individual é, ao mesmo tempo, psicologia social, visto que todas as relações que possuímos, consideradas como fenômenos sociais, nos afetam e influenciam
para além do que temos consciência. Segundo ele, a psicologia das massas interessa-se “pelo indivíduo como membro de uma raça, de uma nação, de uma casta, de uma profissão, de uma instituição, ou como parte componente de uma multidão de pessoas que se organizaram em grupo, numa ocasião determinada, para um intuito definido.” (p. 01). Os grupos se formam devido a algum laço comum que une seus membros, algo com o qual se identificam, embora seus integrantes possam ser diferentes em muitos outros aspectos.
Freud vai questionar o conceito de “instinto social”, segundo o qual o ser humano possui uma pré-disposição a agrupar-se a outros de sua espécie, argumentando que esse talvez não seja um instinto primitivo e sugerindo a possibilidade de investigação sobre as origens de sua evolução. Ele vai citar a obra de Le Bom, “Psychologie des foules” (1855), segundo o qual os indivíduos pertencentes a um grupo assumem uma espécie de “mente coletiva”, um “inconsciente racial”, que, quando emerge, faz cobrir tudo que é heterogêneo ou referente às subjetividades de seus integrantes. Segundo o autor, num grupo, todo sentimento e ato são contagiosos, os impulsos podem ser “generosos ou cruéis, heroicos ou covardes”, mas são sempre imperiosos, a ponto do indivíduo sacrificar seu interesse pessoal em favor do interesse coletivo. Freud questiona como um grupo pode adquirir a capacidade de exercer influência tão decisiva sobre a vida mental dos indivíduos que a ele pertencem, e compara a mente grupal com a mente dos povos primitivos, das crianças e dos neuróticos.
Freud cita algumas características comuns aos grupos, entre elas: sua extrema credulidade e abertura à influência, ausência de capacidade crítica, elevação da afetividade (menos intelecto, mais emoção), necessidade de obediência à autoridade, inclinação a estímulos excessivos, segundo qual os líderes devem “pintar nas cores mais fortes”, exagerar e repetir a mesma coisa incansavelmente, como se, ao repetir algo sem lógica, com o tempo isso passa a ser inquestionável (afinal, tantos outros escutaram e obedeceram o mesmo sem nada dizer). Outro aspecto significativo encontrado nos grupos é a sua intolerância e aversão a tudo que é diferente ou inovador, mantendo assim um caráter conservador e tradicional, como defesa frente ao “novo” que poderia colocar em risco a continuidade daqueles laços. Segundo ele, a sugestão ganha força na reciprocidade: “Isolado, pode ser um indivíduo culto; numa multidão, é um bárbaro, ou seja, uma criatura que age pelo instinto.” (apud Le Bom, p. 05).
“Nos grupos, as ideias mais contraditórias podem existir lado a lado e tolerar-se mutuamente, sem que nenhum conflito surja da contradição lógica entre elas. Esse é também o caso da vida mental inconsciente dos indivíduos, das crianças e dos neuróticos, como a psicanálise há muito tempo indicou.” (p. 07). Podemos citar como exemplo a história do Antigo Testamento do povo judaico, segundo a qual Deus entregou a Moisés as placas com os 10 mandamentos: um desses mandamentos era “Não cometerás adultério”, outro era “Não matarás”; mas, além desses mandamentos, a cultura judaica acrescentou outros, bem como penalidades, sendo que a consequência para alguém pego em flagrante adultério era a morte por apedrejamento. Ora, como eu posso punir alguém que descumpriu um mandamento se estou infligindo outro, que é o de não matar? Contraditório, não? Podemos perceber uma forma socialmente aceita do homem exteriorizar sua agressividade, contornando as restrições impostas pela moral e pela religião. Segundo Freud: “num grupo, o indivíduo é colocado sob condições que lhe permitem arrojar de si as repressões de seus impulsos instintuais inconscientes.” (p. 04); como se, em um grupo, ele não fosse responsável por atos pelos quais, se estivesse sozinho, seria culpado.
Freud considera que num grupo, os indivíduos podem pensar, sentir e agir de forma muito diferente de como o fariam se tomados isoladamente. Podemos refletir sobre os grupos que se formam dentro de uma sociedade ou nação, mas que são contrários as leis e determinações impostas, como nos casos de facções criminosas:
“Momentaneamente, ele (o grupo) substitui toda a sociedade humana, que é a detentora da autoridade, cujos castigos o indivíduo teme e em cujo benefício se submeteu a tantas inibições. É-lhe claramente perigoso colocar-se em oposição a ele, e será mais seguro seguir o exemplo dos que o cercam, e talvez mesmo ‘caçar com a matilha’. Em obediência à nova autoridade, pode colocar sua antiga ‘consciência’ fora de ação e entregar-se à atração do prazer aumentado, que é certamente obtido com o afastamento das inibições. No todo, portanto, não é tão notável que vejamos um indivíduo num grupo fazendo ou aprovando coisas que teria evitado nas condições normais de vida (...)” (p. 10).
Ao escrever sobre a excitabilidade emocional, Freud afirma: “Acha-se inequivocamente em ação algo da natureza de uma compulsão a fazer o mesmo que os outros, a permanecer em harmonia com a maioria.” (p. 10). Ainda citando Le Bom, ele argumenta que quando os seres vivos se reúnem em um certo número, seja um rebanho ou um grupo de pessoas, existe a tendência a se colocarem sob a influência de um chefe. Ele argumenta que os líderes de grupos anseiam por obediência, podendo se fazer notados através de ideias em que acreditam fanaticamente. Ele discute que, a admiração e respeito que os integrantes de um grupo sentem por seu líder (devido ao seu poder e prestígio) tende a paralisar suas faculdades críticas, prejudicando o questionamento e a busca pela veracidade dos fatos e da realidade; comparando este estado mental ao sonho e a hipnose, em que a verificação da realidade encontra-se em segundo plano. O autor levanta a crítica de que os grupos, nesses casos, não possuem vontade própria, mas são guiados pela vontade de seu “comandante”. Segundo ele, todas as cabeças se curvam como se estivessem diante de um poder sobrenatural.
Freud, nessa obra, vai definir a libido como a energia proveniente das pulsões de tudo que pode ser abarcado sobre a palavra “amor”. Ele cita o amor de que os poetas cantam, o sexual, geralmente a união entre dois indivíduos; mas afirma que a libido é muito mais abrangente, e envolve também o amor próprio, o amor pela família, pelos amigos, pela humanidade, e também a devoção a objetos materiais ou ideias abstratas. Ele argumenta que, de acordo com a pesquisa psicanalítica, todas essas expressões são tendências dos mesmos impulsos pulsionais que buscam a união sexual, aquilo denominado por Platão como “Eros”, sendo que, nas outras formas, eles são desviados desse objetivo original, como citado pela apóstolo Paulo em sua Epístola aos Coríntios, abarcando a palavra amor em um sentido mais amplo.
Freud responde as críticas que atribuem a Psicanálise o termo de “Pansexualismo”, (teoria segundo a qual todas as formas de comportamento se baseiam na sexualidade) pelo fato dele considerar as pulsões amorosas como originalmente sexuais, ao qual ele rebate argumentando que não vê mérito algum em se considerar o sexo como algo vergonhoso ou humilhante, pois faz parte da natureza humana. Ele então vai supor que essas relações amorosas, ou laços libidinais, constituem a essência de uma mente grupal.
Freud vai argumentar que existem tipos muito diferentes de grupos, existem grupos de caráter efêmero (ex: grupos revolucionários) e outros grupos estáveis e duradouros (grupos corporificados nas instituições da sociedade), existem grupos naturais ou artificiais, grupos primitivos ou altamente organizados, grupos sem líderes e com líderes, entre outras definições. Ele escolhe então, dois exemplos, que considera como grupos altamente organizados, permanentes e artificiais: A Igreja e o Exército.
“Uma Igreja e um exército são grupos artificiais, isto é, uma certa força externa é empregada para impedi-los de desagregar-se e para evitar alterações em sua estrutura. Via de regra, a pessoa não é consultada ou não tem escolha sobre se deseja ou não ingressar em tal grupo; qualquer tentativa de abandoná-lo se defronta geralmente com a perseguição ou severas punições, (...)” (p. 16). Existem casos em que a pessoa expressa livre desejo em estar nesses grupos, entretanto, a maioria das pessoas já nasce com uma religião pré-determinada pela família, ou então, possui a obrigação, no caso dos homens, de alistar-se ao completar a maioridade.
Freud argumenta que, o que une esses grupos citados, é a “ilusão” de que há uma cabeça (na Igreja Católica, Cristo; no exército, o comandante-chefe) que ama e trata a todos de maneira igual e sem distinção, o que ele vai associar a imagem de um pai substituto. “Um traço democrático perpassa pela Igreja, pela própria razão de que, perante Cristo, todos são iguais e todos possuem parte igual de seu amor. Não é sem profunda razão que se invoca a semelhança entre a comunidade cristã e uma família, e que os crentes chamam-se a si mesmos de irmãos em Cristo, isto é, irmãos através do amor que Cristo tem por eles. Não há dúvida de que o laço que une cada indivíduo a Cristo é também a causa do laço que os une uns aos outros.” (p. 16).
Freud vai afirmar que esses grupos estão unidos por dois tipos de laços libidinais, aqueles ligados ao líder (padre/pastor, comandante-chefe) e aqueles que os unem aos demais membros do grupo; um laço, digamos, mais vertical, e outro mais horizontal. Ele vai argumentar sobre a importância do líder na psicologia das massas, afirmando que esse líder pode ser substituído por uma ideia dominante, como, por exemplo, a glória nacional. Podemos citar como exemplo o nazismo, e as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra, e refletir sobre a influência do idealismo proposto por Hitler, e em como seus discursos convenciam as multidões, seja pela admiração, amor pela nação, pelo medo, ou outros motivos que uniam as massas crentes.
Ao discutir sobre o medo, Freud vai argumentar que ele pode ser provocado pela magnitude do perigo, ou pela cessação de laços emocionais, sendo que essa cessação de catexias libidinais é o que gera o medo neurótico ou ansiedade. Afinal, um perigo enfrentando por um grupo tende a ser muito maior se enfrentado apenas por um indivíduo isolado. Ele afirma que o pânico significa a desintegração de um grupo, pois ele envolve o rompimento dos sentimentos e da consideração que os integrantes têm uns pelos outros, como se o grupo não tivesse mais a função de proteção (“cada um por si”, “salve-se quem puder”): “(...) quando o perigo é realmente grande e o grupo não possui fortes laços emocionais, condições que são preenchidas, por exemplo, quando irrompe um incêndio num teatro ou numa casa de diversões.” (p. 18).
Esse pânico também pode ser gerado pela perda do seu líder (quando o Pastor é ferido as ovelhas se dispersam), ou pelo descrédito ou origem de suspeitas sobre esse chefe, como se os laços que mantém os integrantes do grupo dependessem exclusivamente do laço com seu líder, e cessassem caso ele deixasse de existir ou sua imagem deixasse de ter importância.
Um outro aspecto importante sobre a Psicologia das Massas, é o de que um grupo pode se tornar unido através da rivalidade ou ódio perante outro, mesmo que esse grupo lhe seja semelhante e difira em poucos aspectos (considerados significativos). O desprezo e ódio pelo povo judeu e outras etnias, por exemplo, através do ideal da superioridade racial e da valorização nacional, uniram aqueles que defendiam o nazismo. Freud cita que, mesmo entre os cristãos, aqueles que não pertencem a comunidade de crentes e que não amam e aceitam a Cristo, podem ser excluídos. Seria, então, na prática, uma religião do amor apenas para aqueles que lhe são pertencentes. Ele afirma que é característico de todas as religiões a intolerância e rigidez com aqueles que não seguem seus princípios. Mais uma vez vemos, nos exemplos citados, a agressividade humana emergindo frente às diferenças e ao risco que a alteridade traz. Nesse sentido, Freud escreve que a empatia é importante em “nosso entendimento do que é inerentemente estranho ao nosso ego nas outras pessoas.” (p. 24).
Ao discutir sobre a ambiguidade nas relações, Freud escreve:
“As provas da psicanálise demonstram que quase toda relação emocional íntima entre duas pessoas que perdura por certo tempo — casamento, amizade, as relações entre pais e filhos — contém um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade, o qual só escapa à percepção em consequência da repressão. Isso se acha menos disfarçado nas altercações comuns entre sócios comerciais ou nos resmungos de um subordinado em relação a seu superior.
A mesma coisa acontece quando os homens se reúnem em unidades maiores. Cada vez que duas famílias se vinculam por matrimônio, cada uma delas se julga superior ou de melhor nascimento do que a outra. De duas cidades vizinhas, cada uma é a mais ciumenta rival da outra; cada pequeno cantão encara os outros com desprezo. Raças estreitamente aparentadas mantêm-se a certa distância uma da outra: o alemão do sul não pode suportar o alemão setentrional, o inglês lança todo tipo de calúnias sobre o escocês, o espanhol despreza o português. Não ficamos mais espantados que diferenças maiores conduzam a uma repugnância quase insuperável, tal como a que o povo gaulês sente pelo alemão, o ariano pelo semita e as raças brancas pelos povos de cor.” (p. 20/21).
Freud argumenta que essa hostilidade desaparece (de forma temporária ou permanente) dentro de um grupo. Essa tolerância é decorrente de uma limitação do narcisismo produzido pelo laço libidinal com outras pessoas. No contato com estranhos, por exemplo, as antipatias e aversões podem demonstrar a expressão do amor a si mesmo, desse narcisismo, que serve como proteção ou preservação do próprio indivíduo, como se aquilo que lhe é diferente ou contrário trouxesse consigo uma crítica ou exigência de alteração de si. “O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos. (...)” (p. 21). Ele, entretanto, discute que essa limitação duradoura do narcisismo só persiste enquanto existe um lucro imediato obtido pela colaboração dos outros, embora considere também, como exemplo, o caso em que relações de trabalho permanecem e se fortalecem além de um ponto que pode ser meramente lucrativo.
Freud cita que concordou com a hipótese formulada por Darwin em 1912, de que a forma primitiva da sociedade humana era uma horda (povo nômade) governada despoticamente pelo macho mais forte. Ele discute que, num grupo de indivíduos parecidos, se destaca um que possui maior força, e passa a dispor de poder sobre os demais. Ele separa então dois tipos de psicologia: a dos membros e a do chefe, líder ou pai.
Aquele que possui o poder, segundo ele, é o mais forte, livre e independente, não necessitando do reforço dos outros para fazer o que desejar, sua vontade prevalece sobre o restante. Freud lança a ideia de o “pai primevo” ter impedido os filhos de satisfazer seus impulsos sexuais, obrigando-os a abstinência, o que gerou, como consequência, que eles voltassem suas pulsões libidinais inibidas em seu propósito sexual para formar laços afetuosos uns com os outros. Deste fato surgiu então a psicologia de grupo, decorrente do ciúme e da intolerância sexual de seu chefe.
Se esse líder morria, era substituído, ainda representando o “pai primevo”. Dessa relação, digamos de autoritarismo, surge as características que Freud aponta na psicologia das massas: a sede de obediência, o desejo pela autoridade, a submissão diante de uma personalidade predominante e perigosa, surgindo daí uma relação passivo masoquista. “O pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o ego no lugar do ideal do ego.” (p. 36). Assim, os grupos de nossa sociedade atual aparecem como uma revivescência dessa horda primeva.
O pai primevo era, pois, o ideal de todos, ao mesmo tempo temido e honrado. Esses “irmãos”, segundo o mito científico, uniram-se e mataram o pai. “Ninguém do grupo de vitoriosos podia tomar o seu lugar, ou, se algum o fez, retomaram-se os combates, até compreenderem que deviam todos renunciar à herança do pai. Formaram então a comunidade totêmica de irmãos, todos com direitos iguais e unidos pelas proibições totêmicas que se destinavam a preservar e a expiar a lembrança do assassinato.” (p. 41). Contudo, esse grupo de irmãos paulatinamente retornou a uma vivência da relação primeva, com o “macho” tomando o lugar de chefe da família e anulando “as prerrogativas da ginecocracia”, sendo essa nova família uma sombra da horda primeva, com um grande número de pais limitados cada um pelos direitos dos outros.
Freud identifica outro mecanismo para a manutenção dos laços emocionais: a identificação, que ele considera como a forma mais primitiva e original de laço libidinal, como define: “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo.” (p. 22). Um menino, por exemplo, se identifica com seu pai, tomando-o como ideal, e tenta imitá-lo no desejo de ser como ele e tomar seu lugar. Ele demonstra dois laços psicológicos distintos: um investimento na mãe como objeto sexual e uma identificação com o pai, que posteriormente assume uma tonalidade hostil por identificar no genitor uma barreira para ter a mãe inteiramente a si.
No caso da homossexualidade masculina, ocorre uma diferenciação entre a identificação com o pai e a escolha dele como objeto; sendo que no primeiro caso o genitor é quem a criança gostaria de ser, já no segundo caso é quem a criança gostaria de ter: “Pode acontecer que o complexo de Édipo se inverta e que o pai seja tomado como objeto de uma atitude feminina, objeto no qual os instintos diretamente sexuais buscam satisfação; nesse caso, a identificação com o pai torna-se a precursora de uma vinculação de objeto com ele. A mesma coisa também se aplica, com as substituições necessárias, à menina.” Freud discute a gênese da homossexualidade ao citar o exemplo de um jovem que, ao final da puberdade precisa trocar a mãe por outro objeto sexual; ele, no entanto, se identifica com ela e procura um objeto a quem possa dirigir todo o amor e carinho que recebeu da genitora. Segundo o autor, a identificação “esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo.” Ele argumenta que o ego pode “copiar” tanto uma pessoa amada, como alguém que não o é. Sendo que a identificação é parcial e limitada, e o ego pode tomar apenas um traço isolado dessa pessoa.
Retomando os aspectos dos grupos, Freud vai citar a ausência de iniciativa e a dependência de seus membros, bem como a semelhança de suas atitudes:
“Somos lembrados de quantos desses fenômenos de dependência fazem parte da constituição normal da sociedade humana, de quão pouca originalidade e coragem pessoal podem encontrar-se nela, de quanto cada indivíduo é governado por essas atitudes da mente grupal que se apresentam sob formas tais como características raciais, preconceitos de classe, opinião pública etc. A influência da sugestão torna-se um grande enigma para nós quando admitimos que ela não é exercida apenas pelo líder, mas por cada indivíduo sobre outro indivíduo (...)” (p. 30).
Freud vai citar o livro de Trotter sobre o instinto de rebanho ou instinto gregário (1916), discordando da afirmação do autor de que esse instinto das espécies se agregarem em unidades cada vez mais abrangentes seja inato ao ser humano, não o considerando como um instinto primário. Segundo Freud, durante um longo período no início da infância, esse sentimento de grupo ou instinto gregário, não é observado nas crianças pequenas, sendo que inicialmente, ao serem colocadas junto a outras crianças, surge um sentimento inicial de inveja, sobretudo das crianças mais velhas com as mais novas. O “sentimento comunal” é posteriormente desenvolvido na escola, substituindo o ciúme, sendo que a primeira exigência dessa formação escolar é a de justiça, de um tratamento igualitário. “Se nós mesmos não podemos ser os favoritos, pelo menos ninguém mais o será.” (p. 31). Freud lança a hipótese de que esse “espírito de grupo” teve sua derivação originalmente da inveja: “Ninguém deve querer salientar-se, todos devem ser o mesmo e ter o mesmo. (...) Essa exigência de igualdade é a raiz da consciência social e do senso de dever.” (p. 32). Vemos então, como citado anteriormente, uma característica essencial para a manutenção dos grupos: que todos os indivíduos sejam considerados iguais entre si, e amados da mesma forma por uma pessoa isolada, superior: o líder.
Retomando o conceito de amor de Freud, este é destinado a diversos tipos de relações emocionais. Segundo o autor, o amor sensual comum, voltado diretamente a satisfação sexual, expira sua catexia quando atingiu seu objetivo. No entanto, como o desejo sexual é uma necessidade que ressurge constantemente, o ser humano passa a investir de forma duradoura em um único objeto e decide amá-lo “também nos intervalos desapaixonados” (p. 26).
O primeiro objeto de amor, tanto do menino quanto da menina, será sempre a mãe, ou quem cumpre a função materna. “Essa primeira configuração do amor da criança, que nos casos típicos toma a forma do complexo de Édipo, sucumbe, tanto quanto sabemos a partir do começo do período de latência, a uma onda de repressão”. (p. 43).
Existem, pois, os impulsos considerados sexuais, e os afetuosos (inibidos em sua finalidade). Após o período de latência, que tem seu início por volta dos 6 anos e termina quando surge a puberdade, vemos na adolescência um momento no qual os impulsos sexuais ressurgem mais fortes ligados a fins diretamente sexuais. Segundo Freud, em casos “desfavoráveis” durante a puberdade, um jovem pode dirigir seus impulsos sexuais separados das tendências afetuosas, citando como exemplo um homem que sente-se excitado por mulheres que desconhece e pode até desprezar, mas não se relaciona com mulheres pelas quais sente respeito e admiração.
“Com mais frequência, contudo, o adolescente consegue efetuar um certo grau de síntese entre o amor não sensual e celeste e o amor sensual e terreno, e sua relação com seu objeto sexual se caracteriza pela interação de instintos desinibidos e instintos inibidos em seu objetivo. A profundidade em que qualquer um está amando, quando contrastada com seu desejo puramente sensual, pode ser medida pela dimensão da parte assumida pelos instintos de afeição inibidos em seu objetivo.” (p. 27).
Um aspecto em relação ao fato de “estar amando”, é o que Freud denomina como “fenômeno da supervalorização sexual”, onde o objeto amado tem suas características valorizadas de uma forma intensa, e desfruta de certa liberdade quanto a crítica, que prejudica o pensamento racional, conhecida na famosa expressão de que o amor nos deixa cegos; “na cegueira do amor, a falta de piedade é levada até o diapasão do crime.” (p. 28); uma tendência denominada por Freud como de idealização. O indivíduo passa a apresentar traços de humildade e limitação do narcisismo característicos de quem está apaixonado. Nesse sentido, o objeto amado passa a ser tratado como o indivíduo trata o seu próprio ego. Quando estamos amando “uma quantidade considerável de libido narcisista transborda para o objeto. Em muitas formas de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de sucedâneo para algum inatingido ideal do ego de nós mesmos. Nós o amamos por causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e que agora gostaríamos de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer nosso narcisismo.”
Essa “devoção ao objeto” pode ocorrer de forma mais intensa quando o amor não é correspondido, considerando que a cada relação sexual ocorre uma diminuição dessa supervalorização. Freud resume essas considerações ao considerar que o objeto sexual foi colocado no ideal do ego. Existe, pois, uma diferença entre a identificação e esse sentimento extremo de “fascinação” ou “servidão”. No primeiro caso o ego se enriquece com as características do objeto amado, no segundo caso ele se empobrece.
Freud afirma que são os impulsos sexuais inibidos em seu objetivo que proporcionam os laços permanentes entre as pessoas; visto que na satisfação sexual ocorre uma descarga de energia, já os impulsos inibidos são duradouros pois não encontram uma satisfação completa. “É o destino do amor sensual extinguir-se quando se satisfaz; para que possa durar, desde o início tem de estar mesclado com componentes puramente afetuosos — isto é, que se acham inibidos em seus objetivos” (p. 29).
Freud discute que, nos grupos, os laços libidinais não trazem em seu fim um objetivo sexual, embora possam atuar com a mesma intensidade. Ele considera esses investimentos desviados de seu fim sexual como “gradações do estado de estar amando”, e afirma que “só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo.” (p. 21).
Segundo o autor, em um grupo primário, os integrantes colocam o objetivo que os une como o seu ideal de ego, sendo que, por conseqüência, identificam-se mutuamente em seu ego. “Todo cristão ama Cristo como seu ideal e sente-se unido a todos os outros cristãos pelo vínculo da identificação (...) Pode-se ser um bom cristão e, contudo, estar distante da ideia de se pôr no lugar de Cristo e ter, como ele, um amor abrangente pela humanidade. Não precisamos nos sentir capazes, fracos mortais que somos, da grandeza de alma e da força de amor do Salvador. Porém, esse novo desenvolvimento na distribuição da libido no grupo constitui provavelmente o fator sobre o qual o cristianismo baseia sua alegação de haver atingido um nível ético mais elevado.” (p. 41).
“Há sempre uma sensação de triunfo quando algo no ego coincide com o ideal do ego. E o sentimento de culpa (bem como o de inferioridade) também pode ser entendido como uma expressão da tensão entre o ego e o ideal do ego.” (p. 39). Segundo o autor, a distância entre o ego e o ideal de ego varia muito de uma pessoa a outra, sendo que essa separação gera uma tensão que, em alguns momentos acaba sendo temporariamente desfeita, como argumenta: “Em todas as renúncias e limitações impostas ao ego, uma infração periódica da proibição é a regra. Isso, na realidade, é demonstrado pela instituição dos festivais, que, na origem, nada mais eram do que excessos previstos em lei e que devem seu caráter alegre ao alívio que proporcionam. As saturnais dos romanos e o nosso moderno carnaval concordam nessa característica essencial com os festivais dos povos primitivos, que habitualmente terminam com deboches de toda espécie e com a transgressão daquilo que, noutras ocasiões, constituem os mandamentos mais sagrados. Mas o ideal do ego abrange a soma de todas as limitações a que o ego deve aquiescer e, por essa razão, a revogação do ideal constituiria necessariamente um magnífico festival para o ego, que mais uma vez poderia então sentir-se satisfeito consigo próprio.” (p. 38).
“Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos, acha-se ligado por vínculos de identificação em muitos sentidos e construiu seu ideal do ego segundo os modelos mais variados. Cada indivíduo, portanto, partilha de numerosas mentes grupais — as de sua raça, classe, credo, nacionalidade etc. — podendo também elevar-se sobre elas, na medida em que possui um fragmento de independência e originalidade.” (p. 37).
Retomando o conceito de amor, Freud considera que os impulsos diretamente sexuais são desfavoráveis a formação de um grupo. “Na história da evolução da família é fato que também houve relações grupais de caráter sexual (casamentos grupais), mas, quanto mais importante o amor sexual se tornou para o ego e mais desenvolveu o ego as características de estar amando, com maior premência exigiu ser limitado a duas pessoas — una cum uno —, como é prescrito pela natureza do objetivo genital. As inclinações polígamas tiveram de contentar-se em encontrar satisfação numa sucessão de objetos mutáveis.
Duas pessoas que se reúnem com o intuito de satisfação sexual, na medida em que buscam a solidão, estão realizando uma demonstração contra o instinto gregário, o sentimento de grupo. Quanto mais enamoradas se encontram, mais completamente se bastam uma à outra. (...) Sentimentos de ciúme da mais extrema violência são convocados para proteger a escolha de um objeto sexual da usurpação por um laço grupal.” (p. 44-45).
Segundo Freud, se as pulsões sexuais se tornam muito fortes, podem desintegrar qualquer formação grupal. “Nos grandes grupos artificiais, a Igreja e o exército, não há lugar para a mulher como objeto sexual. As relações amorosas entre homens e mulheres permanecem fora dessas organizações. Mesmo onde se formam grupos compostos tanto de homens como de mulheres, a distinção entre os sexos não desempenha nenhum papel. Mal há sentido em perguntar se a libido que mantém reunidos os grupos é de natureza homossexual ou heterossexual, porque ela não se diferencia de acordo com os sexos e, particularmente, mostra um completo desprezo pelos objetivos da organização genital da libido. (...) A Igreja Católica possui o melhor dos motivos para recomendar a seus seguidores que permaneçam solteiros, e para impor o celibato a seus sacerdotes, mas o apaixonar-se com freqüência impeliu mesmo padres a abandonar a Igreja. Da mesma maneira, o amor pela mulheres rompe os vínculos grupais de raça, divisões nacionais e sistema de classes sociais, produzindo importantes efeitos como fator de civilização. Parece certo que o amor homossexual é muito mais compatível com os laços grupais, mesmo quando toma o aspecto de impulsos sexuais desinibidos, fato notável cuja explicação poderia levar-nos longe.” (p. 45).
Freud cita que, frequentemente, desejos eróticos podem surgir de “relações emocionais de caráter amistoso, baseadas na apreciação e na admiração”, que tiveram um início despropositado em relação ao fim sexual; “(...) quão facilmente até um intenso vínculo religioso pode converter-se em ardente excitação sexual.” (p. 44). Aos mesmo tempo que impulsos sexuais podem se converter em um laço permanente e afetuoso: “a consolidação de um apaixonado casamento de amor repousa em grande parte nesse processo.” (p. 43).
Como mencionado anteriormente, as pulsões inibidas em seus objetivos possuem uma vantagem significativa ao passo que (por não garantirem uma satisfação completa) proporcionam a criação de vínculos permanentes. “(...) esses instintos inibidos em seus objetivos conservam alguns de seus objetivos sexuais originais; mesmo um devoto afetuoso, mesmo um amigo ou um admirador, desejam a proximidade física e a visão da pessoa que é agora amada apenas no sentido ‘paulino’.” (p. 43).
Freud argumenta que, estar amando, é um estado baseado na presença simultânea de impulsos diretamente sexuais e impulsos inibidos em seus objetivos (impulsos sexuais e afetuosos), e que esses impulsos inibidos em sua finalidade foram essenciais para a formação da sociedade, da cultura e da civilização.
“A fim de fazer um juízo correto dos princípios éticos do grupo, há que levar em consideração o fato de que, quando indivíduos se reúnem num grupo, todas as suas inibições individuais caem e todos os instintos cruéis, brutais e destrutivos, que neles jaziam adormecidos, como relíquias de uma época primitiva, são despertados para encontrar gratificação livre. Mas, sob a influência da sugestão, os grupos também são capazes de elevadas realizações sob forma de abnegação, desprendimento e devoção a um ideal. Ao passo que com os indivíduos isolados o interesse pessoal é quase a única força motivadora, nos grupos ele muito raramente é proeminente. É possível afirmar que um indivíduo tenha seus padrões morais elevados por um grupo” (p. 06).
Embora Freud considere que o trabalho intelectual tende a ser fruto de algo construído na solidão, ao mesmo tempo reconhece que, através da mente grupal e de suas relações, surgiu a linguagem, bem como as canções populares, o folclore, entre outras heranças culturais. “Permanece questão aberta, além disso, saber quanto o pensador ou o escritor, individualmente, devem ao estímulo do grupo em que vivem, e se eles não fazem mais do que aperfeiçoar um trabalho mental em que os outros tiveram parte simultânea.” (p. 09).
Por fim, deixo uma imagem para reflexão, que encontrei salva em meu notebook e achei simples e muito significativa. (Peço desculpas por não ter a referência de sua origem):

Tiago de Sousa Medeiros
REFERÊNCIA:
FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e a Análise do Eu. 1921. Disponível em: <https://professorsauloalmeida.files.wordpress.com/2015/08/grupos-e-massa-freud.pdf> Acesso em 10 fev. 2019.
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