Segundo Silva (2013), o processo de transexualização deve ser compreendido de uma forma abrangente, conforme argumenta: “(...) consiste no percurso do autorreconhecimento enquanto transexual e na produção da identidade transexual a partir de experiências pessoais. O sufixo ação permite a ideia de movimento e processo, ampliando a noção para além da cirurgia de modelação corporal ou de transgenitalização. O processo transexualizador, por sua vez, incide no uso de roupas femininas (transexuais femininas) e masculinas (transexuais masculinos), na utilização de hormônios para surgimento ou diminuição dos seios e/ou pelos corporais - dependendo da escolha do solicitante, na utilização de próteses de silicone e na cirurgia de transgenitalização.” (p. 10).
Em 2008 o Ministro da Saúde, na época José Gomes Temporão, instituiu o Processo Transexualizador no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), que atualmente é regida pela Portaria nº 2.803 de 19 de novembro de 2013. A Portaria apresenta, em seu artigo 2º, como diretrizes de assistência:
“I - integralidade da atenção a transexuais e travestis, não restringindo ou centralizando a meta terapêutica às cirurgias de transgenitalização e demais intervenções somáticas; II - trabalho em equipe intedisciplinar e multiprofissional; III - integração com as ações e serviços em atendimento ao Processo Transexualizador, tendo como porta de entrada a Atenção Básica em saúde, incluindo-se acolhimento e humanização do atendimento livre de discriminação, por meio da sensibilização dos trabalhadores e demais usuários.”
Em seu artigo 3º apresenta como componentes da linha de cuidado: a Atenção Básica e a Atenção Especializada; e em seu artigo 4º define, dentro da Atenção Especializada, as modalidades: Ambulatorial e Hospitalar. Em seu artigo 13 é apresentado como equipe da Atenção Especializada no Processo Transexualizador: médico clínico geral, psiquiatra, endocrinologista, enfermeiro, psicólogo e assistente social, sendo que para o acompanhamento de procedimentos cirúrgicos são incluídos: médico ginecologista obstetra, urologista e cirurgião plástico. Em seu artigo 14 afirma que os procedimentos cirúrgicos poderão ser realizados a partir de 21 anos de idade, desde que tenha indicação e acompanhamento prévio de dois anos por equipe multiprofissional, conforme preconizado pela Resolução nº 1.955 de 3 de setembro de 2.010 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Para os atendimentos clínicos, como a terapia hormonal, a idade mínima colocada é 18 anos. Ainda em seu artigo 14, apresenta os procedimentos cirúrgicos disponíveis na rede pública (como retirada da mama ou colocação de prótese mamária, amputação do pênis e construção de neovagina, retirada do útero e ovários, entre outros) e em seu artigo 15 as cirurgias disponíveis em caráter experimental (vaginectomia e neofaloplastia com implante de próteses penianas e testiculares). Segundo o Ministério da Saúde, o SUS conta com cinco hospitais habilitados a realizar o Processo Transexualizador: em Goiás/Goiânia (GO), no Rio de Janeiro (RJ), em Porto Alegre (RS), em São Paulo (SP) e em Recife (PE); que, vale considerar, apresentam-se em pequeno número frente a grande demanda que traz uma fila de espera extensa.
Santos (CRP SP, 2011) argumenta sobre a importância do acompanhamento psicológico antes, durante e após os procedimentos cirúrgicos; e afirma que a cirurgia de transgenitalização não é o ponto central onde uma pessoa deixa ou não de ser transexual. Segundo a WPATH (Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero, 2012), devem ser ofertadas orientações sobre as contraindicações da terapia hormonal e dos procedimentos cirúrgicos, bem como opções reprodutivas. Soares (CRP SP, 2011) cita que algumas pessoas após a cirurgia de mudança de sexo não se consideram ou desejam mais serem tratadas como transexual, mas como homem ou mulher. A WPATH (2012) apresenta que arrependimentos decorrentes de mudanças das características sexuais primárias e secundárias são extremamente raros, mesmo entre aqueles com complicações cirúrgicas mais sérias. Como citado anteriormente, o Processo Transexualizador não se restringe a cirurgia de mudança de sexo, sendo que cada caso deve ter um acompanhamento específico de acordo com as necessidades e desejos do usuário, conforme apontam Factor e Rothblum (2008):
“Algumas pessoas procuram feminilização/masculinização máxima, enquanto outras experimentam alívio com uma apresentação andrógena resultante da minimização hormonal das características sexuais secundárias presentes” (Apud WPATH, 2012, p. 37).
O Ministério da Saúde também alerta para a importância do acompanhamento médico após os procedimentos cirúrgicos: “Travestis e mulheres transexuais, mesmo quando já realizaram modificações corporais e/ou cirurgias de redesignação sexual, têm indicação de realizar exames para prevenção de câncer de próstata. Já os homens trans podem necessitar de atendimento ginecológico, tanto de caráter preventivo, como para o tratamento de problemas habituais dessa especialidade.” (p. 13).
De acordo com Rossi (2018), a primeira cirurgia de mudança de sexo realizada no Brasil foi em 1971, feita pelo médico Roberto Farina (na época um dos mais importantes cirurgiões plásticos do país), realizada no Hospital Oswaldo Cruz em São Paulo, em relação a Waldirene, que mudou seu sexo de masculino para feminino. Entretanto, o cirurgião foi denunciado pelo Ministério Público de São Paulo cinco anos após o procedimento, com a acusação de grave lesão corporal, por estar “mutilando” pessoas. O país passava pelo período de Ditadura Militar e, embora a cirurgia tenha sido um sucesso, como atestada pelo IML (Instituto Médico Legal) que na época descreveu a cirurgia como “intervenção terapeuticamente necessária”, o profissional foi condenado em 1978 a dois anos de prisão, tendo o promotor do caso, Messias Piva, afirmado que “(...) Waldir Nogueira é um doente mental.” (Waldir era o nome registral de Waldirene, que na época entrou com processo para mudança no registro). O juiz Adalberto Spagnuolo chegou a afirmar na sentença que “o” paciente deveria “ter sido submetido a tratamento psicanalítico de longa duração como tentativa de cura.” Podemos refletir sobre como a ciência psicológica foi usada de forma deturpada para justificar e legitimar ações discriminatórias. Vale considerar que Freud, o pai da Psicanálise, manteve durante a sua vida uma postura política contra a patologização e criminalização da homossexualidade. Em alguns trechos do processo realizado pelo Ministério Público de SP, percebemos falas preconceituosas e discriminatórias por parte dos operadores do Direito, como:
“(...) que os pais de família sejam obrigados a suportar, em seus lares, filhos homossexuais (do que ninguém está livre) e ainda mutilados.”, e em outro ponto: “Tais indivíduos, portanto, não são transformados em mulheres, e sim em verdadeiros monstros, através de uma anômala conformação artifical.”
Outros trechos se referem a homossexuais como “aberrações” e definem Waldirene como prostituta. Em 1979 a condenação de Farina foi anulada pelos desembargadores que julgaram o caso em segunda instância.
O primeiro caso de cirurgia de mudança de sexo realizado no mundo, segundo Rossi, 2018) foi o da americana Christine Jorgensen, em 1952 na Dinarmarca. Antes disso, em 1931, Lili Elba passou pela primeira tentativa de cirurgia, mas morreu em uma das operações, numa tentativa de transplante de útero, como retratado no filme “A Garota Dinamarquesa” (2015). (GÓMES, 2016). Entretanto, apenas em 1997 o Conselho Federal de Medicina (CFM), autorizou a realização de cirurgias de transgenitalização, inicialmente em caráter experimental; que atualmente é regulamentada pela Resolução nº 1.955 de 2010.
Segundo o Ministério da Saúde, entre as mulheres transexuais é comum o uso abusivo de hormônios femininos e a aplicação de silicone industrial em diferentes partes do corpo por pessoas conhecidas como “bombadeiras”; já entre os homens trans são comuns os relatos de uso de anabolizantes esteroides e de hormônios de uso veterinário. A automedicação sem orientação médica e sem exames de acompanhamento traz sérios riscos à saúde. Existem relatos pelo MS de casos de automutilação e tentativas de amputação do pênis e testículos (mulheres trans) e das mamas (homens trans). Percebemos como muitas pessoas transexuais e travestis colocam em risco sua saúde e sua vida, por não adequarem suas características físicas a sua constituição psíquica, e por não encontrarem o Processo Transexualizador pela rede de saúde pública, conforme garantido pela legislação.
Tiago de Sousa Medeiros
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Ministério da Saúde. Atenção integral à saúde da população trans: Conteúdo para Profissionais de Saúde/Trabalhadores do SUS. Disponível em: <http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2016/fevereiro/18/CARTILHA-Equidade-10x15cm.pdf> Acesso em 16 jul. 2019.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html> Acesso em 01 ago. 2019.
CFM, Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.955 de 3 de setembro de 2010. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.652/02. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2010/1955_2010.htm>Acesso em 01 ago. 2019.
GÓMES, Begoña. A fascinante vida de Lili Elbe, a primeira transexual a entrar para a história. El páis, jan. 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/02/estilo/1451748884_931165.html> Acesso em 01 ago. 2019.
CRP SP, Conselho Regional de Psicologia do Estado de São Paulo. Psicologia e Diversidade Sexual. São Paulo, 2011, 91 p.
ROSSI, Amanda. 'Monstro, prostituta, bichinha': como a Justiça condenou a 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil. BBC News Brasil, mar. 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-43561187> Acesso em 18 jul. 2019.
SILVA, Alexsander Lima. Processo de transexualização: uma análise inter e intrageracional de histórias de vida. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade Federal de Alagoas, Departamento de Psicologia: Maceió, 2013, 124 p.
WPATH, World Professional Association for Transgender Health. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. 7ª versão. 2012, 123 p.
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