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Harry Potter e a Psicologia Analítica

Atualizado: 25 de ago. de 2019

O presente trabalho apresenta uma análise da série de livros e filmes “Harry Potter”, da autora britânica Joanne Rowling, com base na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. Buscou-se associar os principais conceitos da teoria aprendidos em sala de aula na disciplina de “Teorias da Personalidade II” que foi cursada no 4º semestre, ministrada pelo professor Mestre Gabriel Carvalho Franco, com a trama da obra escolhida. Este trabalho também foi posteriormente apresentado na XVIII Mostra de Produção Científica do Centro Universitário Salesiano de São Paulo - Unidade São Joaquim.

Jung propôs e desenvolveu conceitos muito importantes na área da Psicologia, como o conceito de inconsciente coletivo, ao propor fundações raciais e filogenéticas da personalidade, onde a psique é influenciada por experiências cumulativas de nossas gerações passadas, não só humanas mas também animais, uma história ancestral que seria universalmente compartilhada por todos, como predisposições que nos fazem reagir ao mundo de uma maneira seletiva. Através de sua teoria ele propôs conceitos importantes como os complexos, os arquétipos, o processo de individuação, entre outros.

Segundo Jung, o arquétipo é uma forma universal de pensamento que contém um grande elemento de emoção, como estruturas ou padrões inatos que várias civilizações e culturas compartilharam entre si no decorrer da história.

Segundo Jung, os humanos foram expostos em sua existência a inumeráveis exemplos de forças naturais poderosas, como terremotos, cachoeiras, inundações, furacões, relâmpagos, incêndios, entre outros. Dessas experiências, desenvolveu-se um arquétipo de energia: “uma predisposição para perceber e ser fascinado pelo poder e um desejo de criar e controlar o poder” (HALL; LINDZEY; CAMPBELL, 2007, p. 90).

Podemos perceber esse arquétipo no conceito de “bruxo” da história, onde todos os bruxos tem a capacidade de estudar e aprender os feitiços e magias, que podem permiti-los controlar o fogo, a água, a gravidade, outras criaturas, etc. Vemos nessa ideia do arquétipo de energia, uma das razões pela qual a história de Rowling sobre essa sociedade secreta de bruxos fez tanto sucesso entre várias faixas etárias.

Jung define o arquétipo do espírito como aquele que pode se apresentar sob a forma de pessoa humana, animal ou gnomo, e manifesta-se sempre em situações nas quais seriam necessários conselhos, intuição, compreensão; que, no entanto, não podem ser produzidos pela própria pessoa. “O arquétipo compensa este estado espiritual de carência através de conteúdos que preenchem a falta”. (JUNG, 1959, p. 213).

Podemos perceber esse arquétipo do espírito em algumas situações durante a história, como quando Harry consegue conjurar o feitiço do Patrono, que é uma espécie de energia positiva formada por lembranças felizes daquele que a produz, uma energia que assume a forma de um animal que seja particularmente especial para a pessoa. Para Harry assume a forma de um cervo (referente a seu pai), para Rony a forma de um cachorro, e para Hermione a forma de uma lontra. Para o personagem Severo Snape assume a forma de uma corça (a mesma forma da mulher por quem era apaixonado, Lílian, mãe de Harry). Essa imagem animal formada pela energia do Patrono é como se fosse um espírito ou se projetasse a partir do estado espiritual e emocional de quem o conjura, e que defende a pessoa contra os Dementadores.

Podemos perceber essa ideia do arquétipo do espírito também sob a forma de uma criatura que auxilia a pessoa através de conselhos ou decisões que ela não pode realizar por si, no personagem Dobby, um elfo doméstico, que aparece em alguns momentos em que Harry precisa de ajuda ou orientação.

Segundo Jung, o arquétipo materno representa aquela pessoa que cuida, que sustenta, que proporciona as condições de crescimento, alimentação e fertilidade, a figura da mãe. Jung descreve poeticamente o arquétipo ao afirmar:

“Trata-se daquele amor materno que pertence às recordações mais comoventes e inesquecíveis da idade adulta e representa a raiz secreta de todo vir a ser e de toda transformação, o regresso ao lar, o descanso e o fundamento originário, silencioso, de todo início e fim.” (JUNG, 1959, p. 101).

Na história Harry não teve praticamente contato com a sua mãe, pois ela e seu pai foram mortos quando ele ainda era bebê. Ele cresce então com os tios e seu primo Duda, mas estes o desprezam e se aproveitam dele através dos serviços domésticos. Somente quando Harry descobre que é bruxo e faz amizade com Rony, sendo acolhido pela família do amigo, é que ele encontra uma figura materna e um acolhimento carinhoso através da senhora Wesley, que sempre se preocupa com ele, lhe envia presentes no natal (suéteres tricotados), e faz deliciosas comidas quando ele os visita, tratando-o como se fosse seu próprio filho.

Segundo Jung, as características masculinas e femininas são encontradas em ambos os sexos. Ele atribuiu o lado feminino da personalidade do homem ao arquétipo Anima, e o lado masculino da personalidade da mulher ao arquétipo Animus. Segundo Hall, Lindzey e Campbell (2007, p. 91): “Tais arquétipos não só fazem com que cada sexo manifeste características do outro sexo, mas também agem como imagens coletivas que motivam cada sexo a responder aos membros do outro sexo e a compreendê-los.

O homem apreende a natureza da mulher por meio de sua anima, e a mulher apreende a natureza do homem por meio de seu animus.”

Podemos perceber o arquétipo Animus de Hermione na história “o prisioneiro de Askaban” quando ela fica brava com Draco Malfoy (pois, por sua culpa, o hipogrifo Bicuço seria sacrificado) e lhe dá um soco, assumindo uma posição mais agressiva, que se esperava ser tomada por seus amigos. E podemos perceber o arquétipo Anima de Rony quando, na história “o enigma do príncipe”, ele é enfeitiçado pela poção do amor e passa a agir de uma forma mais meiga e carinhosa.

Outro arquétipo proposto por Jung é o da Persona, que seria uma máscara adotada pela pessoa em resposta às demandas da cultura e da sociedade, e às suas próprias necessidades arquetípicas internas. É o papel atribuído a alguém pela sociedade, o papel que esperam que o indivíduo desempenhe. Essa máscara tem como propósito causar uma impressão definida nos outros e, muitas vezes, embora não precisamente, oculta a verdadeira natureza do indivíduo. Podemos perceber o arquétipo da persona mais fortemente em um dos personagens, Pedro Pettigrew, que era amigo dos pais de Harry Potter e os traiu, dizendo ao vilão lord Voldemort onde eles estavam para que fossem mortos.

Pedro Pettigrew agia como se fosse amigo dos integrantes da Ordem da Fênix quando, na verdade, sua verdadeira vontade era voltada ao lado obscuro dos Comensais da Morte. Após a queda de seu líder ele tenta fingir sua morte, cortando um de seus dedos, deixando a culpa para Sirius Black (padrinho de Harry Potter), e transformando-se num rato para se esconder. Utiliza da forma animal como uma fachada, uma máscara, que esconde sua verdadeira natureza. No final do último livro (e esse trecho não consta no filme) ele sente compaixão por Harry (que estava preso como refém na casa dos Malfoy) e o liberta, mas sua mão prateada (que foi concedida por Voldemort no “cálice de fogo” quando Pettigrew corta sua própria mão num ritual de magia negra) era enfeitiçada e o enforca contra sua vontade. Talvez esse tenha sido o único momento em sua história que o personagem Pettigrew tenha tido contato com uma força oposta de sua personalidade e tenha havido uma tentativa de individuação. Podemos perceber que Voldermort esperava que Pettigrew um dia pudesse trai-lo.

Percebemos o arquétipo da Persona também, quando Harry e seus amigos Rony e Hermione utilizam a poção polissuco, assumindo uma fachada ou imagem de outra pessoa, que encobre sua real identidade.

Em seu livro “Os arquétipos e o inconsciente coletivo”, Jung escreve que a identificação de um indivíduo com um certo número de pessoas acarreta na vivência de uma transformação coletiva.

“É um fato que quando muitas pessoas se reúnem para partilhar de uma emoção comum, emerge uma alma conjunta que fica abaixo do nível de consciência de cada um. Quando um grupo é muito grande cria-se um tipo de alma animal coletiva” (JUNG, 1959, p. 130).

Ele alerta que, um indivíduo na multidão, pode facilmente se tornar vítima da sugestionabilidade, no qual, até mesmo a proposta de algo imoral pode ser assumida pelos membros sem que sintam nenhuma responsabilidade. No sentido de que, quando a responsabilidade é de todos, acaba não sendo de ninguém.

Mas Jung não faz apenas uma avaliação negativa da psicologia das massas, ele afirma que há também experiências positivas, como um entusiasmo saudável que incentiva o indivíduo a ações nobres, um sentimento de solidariedade humana.

Podemos perceber a noção dessa “alma animal coletiva” através do grupo de Comensais da Morte, que seguem cegamente Voldemort causando destruição; muitos fascinados com seu poder, outros com medo dele. Através do qual os atos não são necessariamente responsabilizados por um indivíduo, mas pelo grupo.

De uma forma positiva, percebemos essa mesma motivação, de sentir-se parte de algo maior que si, quando os bruxos que são contra Voldemort retomam a Ordem da Fênix, e quando na escola, os próprios alunos criam um grupo denominado A armada de Dumbledore, com a intenção de partilharem conhecimentos e estudarem juntos, visto que o Ministério da Magia estava monopolizando o ensino.

Segundo Jung, o arquétipo do velho sábio representa o mestre, o professor, o iluminador, aquele que “penetra com a luz do sentido a obscuridade caótica da vida” (1959, p. 46). O Velho Sábio aparece nos sonhos como mago, médico, sacerdote, avô ou como qualquer pessoa que possua autoridade. Podemos perceber a figura do velho sábio através do diretor e professor Dumbledore, um bruxo muito respeitado e admirado. No final dos livros e dos filmes ele sempre traz uma explicação acerca do passado de Harry e dos acontecimentos da história, assim como importantes reflexões. Na história “a pedra filosofal” ele explica a função do espelho de Osejed, que mostra aqueles que o veem os seus desejos mais profundos e seus maiores sonhos, sendo que, somente o homem mais feliz do mundo olharia para o espelho e veria a si, seu próprio reflexo, exatamente como ele é; mas o professor alerta que “não vale a pena viver sonhando e se esquecer de viver.”

No final da história “o cálice de fogo”, Dumbledore faz uma bela reflexão dizendo que, embora todos sejam de lugares diferentes e falem línguas diferentes (pois haviam alunos de outros países no torneio tribruxo) os seus corações batem da mesma forma, dizendo que eles deveriam permanecer unidos e fortalecer os laços de amizade nos momentos difíceis. No último livro “as relíquias da morte”, a autora Rowling nos traz alguns trechos do passado de Dumbledore, entre eles que, em muitos momentos ele teve a chance de ser o Ministro da Magia, mas se recusou, pois tinha receio de não conseguir lidar com o poder, demonstrando a sabedoria de alguém que não queria se tornar mais poderoso, pois se conhecia e sabia que poderia se corromper.

E descobrimos, mais ao final da história, que Dumbledore arquitetou sua própria morte (considerando que já estava doente e com um curto prazo de vida) para proteger o menino Malfoy e para que seu aliado Snape ganhasse a confiança de Voldemort.

Segundo Hall, Lindzey e Campbell (2007), os arquétipos não estão necessariamente isolados uns dos outros no inconsciente coletivo, mas eles se interpenetram e fundem-se. “Assim, o arquétipo do herói e o arquétipo do velho sábio podem-se fundir para produzir a concepção do 'rei filósofo', uma pessoa respeitada por ser simultaneamente um líder herói e um visionário sábio” (p. 90). Podemos perceber um outro personagem que também se encaixa nesse arquétipo da sabedoria, embora seja jovem, a aluna Hermione, que se mostra sempre muito estudiosa, sendo aquela que tem sempre boas explicações, boas ideias, e que encontra respostas para “quase” todas as perguntas.

Também podemos reconhecer no professor Dumbledore o arquétipo do herói, pois, em muitos momentos ele salva o jovem Harry e o protege, e é o único personagem que o vilão teme, tanto que, somente após sua morte, a escola de Hogwarts e o Ministério da Magia são tomados pelos Comensais da Morte. O arquétipo do herói também pode ser visto no próprio Harry, na esperança que toda a comunidade bruxa deposita nele por o considerarem como “o eleito”, o único capaz de acabar com o lord das trevas.

Jung, em seu livro “Os arquétipos e o inconsciente coletivo”, escreve:

“O velho corresponde ao arquétipo do sentido, ou seja, do espírito, e a figura ctônica escura no plano inferior, ao oposto do sábio, isto é, ao elemento luciferino, mágico, e, às vezes, destrutivo” (1959, p. 370).

Podemos perceber essa visão do mal ou do vilão através do personagem Tom Riddle,que depois modifica seu nome para Voldemort. Desde as lembranças mais remotas da infância desse personagem podemos perceber um desejo de poder, um prazer frente ao sofrimento dos outros, um descumprimento de regras, e em nenhum momento é mostrado um lado mais inocente ou bondoso do personagem.

Segundo Hall, Lindzey e Campbell (2007), às vezes pode haver a fusão dos arquétipos do demônio e do herói, como pareceu acontecer com Hitler, de modo que obtemos um líder satânico. Também encontramos essa figura em Voldemort, como aquele que promete limpar do mundo bruxo todos aqueles que são considerados “sangues ruins” ou impuros. Nesse sentido a autora baseou muitos trechos de seus livros na ideia do Nazismo e em acontecimentos da Segunda Guerra Mundial.

Segundo Jung, na Antiguidade ocidental e principalmente nas culturas orientais, muitas vezes os opostos permaneciam unificados na mesma imagem, sem que esse paradoxo perturbasse a consciência. Como ele cita ao falar sobre o paradoxo e a figura ambígua dos deuses olímpicos. Já no conceito do Deus judaico da reforma cristã, este ser passa a ser um Deus exclusivamente bom, contrapondo-se ao demônio ou satanás, que reunia em si toda a fonte e origem do mal.

Podemos perceber a figura do bem através de Dumbledore, Harry e seus amigos, e a figura do mal através de Voldemort e de seus Comensais da Morte, e também dos Dementadores. No entanto, o padrinho de Harry, Sirius Black, que havia sido preso e condenado inocentemente, adverte Harry na história “a ordem da fênix”, lhe dando um importante ensinamento: Harry estava preocupado com a sua ligação com a mente de Voldemort, confessou que sentia muita raiva de tudo que já havia lhe acontecido e que tinha medo de estar se tornando mal, ao qual seu padrinho responde que, o mundo não se divide entre pessoas boas e más, todos temos luz e trevas dentro de nós. O que se aproxima do conceito de Jung de entropia, referente ao equilíbrio das forças.

Um conceito considerado central na psicologia analítica é o da individuação: o processo psicológico de integração dos opostos, como, por exemplo, o consciente com o inconsciente, mantendo a sua autonomia relativa. Jung considerou a individuação como o processo central do desenvolvimento humano. A união de opostos é realizada pelo que ele denominou de função transcendente, onde a operação dessa função resulta na síntese de sistemas contrários para formar uma personalidade integrada, equilibrada. O centro dessa personalidade integrada é o Self. Ele argumentou também que muito desajustamento e infelicidade, assim como conflitos e tensões, se devem a um desenvolvimento unilateral da personalidade, que ignora facetas importantes da natureza humana. (HALL; LINDZEY; CAMPBELL, 2007). Como podemos perceber em Voldemort, que tinha uma natureza estritamente “má”, e tinha consciência apenas de parte da sua alma, ignorando todas as outras que haviam sido divididas.

Segundo o princípio da equivalência a “desenergização do ego consciente é acompanhada pela energização do inconsciente” (HALL; LINDZEY; CAMPBELL, 2007, p. 98). A energia se encontra continuamente fluindo de um sistema da personalidade para outro, e essas redistribuições de energia constituem a dinâmica da personalidade. Jung (1959), vai denominar como “fenômeno da possessão” (p. 127), o fato de um conteúdo, ou qualquer pensamento ou parte da personalidade, dominar o indivíduo. Podemos perceber esse fato na história “a ordem da fênix”, quando Harry é “possuído” por Voldemort, que tenta adentrar e dominar sua mente trazendo a tona suas lembranças mais dolorosas e inconscientes. A energia do inconsciente que é reprimida, conforme afirma Jung, tenderá a fluir para o ego e perturbar os processos racionais. No entanto, Harry consegue unir outro aspecto da sua personalidade, que são suas lembranças felizes e suas potencialidades, e consegue assumir o controle consciente sobre sua psique novamente.

Vale lembrar que, no princípio da entropia, ocorre um equilíbrio das forças, onde, segundo Jung, a autorrealização seria a meta do desenvolvimento psíquico, onde a dinâmica da personalidade busca um equilíbrio dos opostos.

É impossível, no entanto, como afirma o autor, uma realização completa ou um perfeito equilíbrio ou entropia.

Podemos considerar que Voldemort também representa a Sombra, como a parte mais obscura, mais desconhecida e reprimida no inconsciente de Harry. No entanto é, essa mesma parte da sua personalidade que lhe fornece habilidades como a ofidioglossia (capacidade de falar com as cobras) e os sonhos, que o fazem ter uma conexão com a mente do vilão e descobrir (na história “a ordem da fênix”) que o pai de Rony, o senhor Wesley, foi atacado por uma cobra no Ministério, sendo que essa informação salvou a vida do pai do amigo. Nesse sentido, a sombra também possui aspectos positivos e potencialidades.

Segundo Voldemort, em uma de suas falas na primeira história (“a pedra filosofal”), não existe o bem e o mal, mas apenas o poder, e aqueles que são fracos demais para consegui-lo, sendo dignos apenas os fortes, que seriam aqueles que descenderiam de uma linhagem de bruxos (e não os nascidos “trouxas”, ou humanos comuns).

Voldemort tem um enorme desejo pelo poder, assim como de permanecer no poder, então ele passa a buscar uma forma de garantir sua imortalidade. Logo na primeira história vemos esse conceito em suas tentativas de tomar a pedra filosofal. Jung afirma que todas as culturas tem uma ideia de um segundo nascimento ou renascimento. Nesse sentido, é como se Voldemort renascesse na história “o cálice de fogo” ao assumir um novo corpo, e antes disso também ao apresentar-se com um novo nome.

Descobrimos na história sobre “o enigma do príncipe” que o vilão dividiu a sua alma em 7 partes, utilizando uma magia negra e proibida, as horcruxes, através da qual ele poderia dividir a sua alma e prendê-la a um objeto ou criatura, garantindo que ele permanecesse nesse mundo caso seu corpo envelhecesse ou fosse destruído. Ele então cria 6 horcruxes, dividindo sua alma em 7 pedaços, contando com seu próprio corpo ou a parte de sua alma que é consciente (visto que nos livros ele não têm a consciência das suas outras partes quando elas são destruídas, embora no filme ele sinta isso). Percebemos então uma divisão, e não uma atitude de integração ou de unidade. Ele divide a si mesmo na busca por ser eterno.

Descobrimos na história “a ordem da fênix” que o motivo de Voldemort ter matado os pais de Harry não foi somente porque eles se opunham a sua tirania ou a ditadura dos “sangues puros”, mas por conta de uma profecia que dizia que um jovem bruxo nascido em determinada época o mataria; sua intenção então é matar o bebê de Lílian e Tiago Potter, porque têm medo da profecia que afirmava que “um não poderia viver enquanto o outro estivesse vivo”. Nessa tentativa o vilão mata os pais de Harry, mas sua mãe, ao se colocar a frente do filho, lhe concede uma proteção através de seu sacrifício (vemos aqui a ideia do arquétipo materno novamente), sendo que, quando Voldemort lança o feitiço da maldição da morte contra Harry, este feitiço se volta contra o feiticeiro.

No entanto, descobrimos ao final da última história, que havia uma sétima horcruxe, um oitava parte da alma de Voldemort, que existia sem que ele tivesse consciência, e que era o próprio Harry. Pois, quando ele matou Lílian e o feitiço contra Harry ricocheteou atingindo-o, sua alma estava tão fragmentada que uma parte dela se dividiu e prendeu-se a única criatura viva daquela casa, o bebê, através da cicatriz em forma de raio. Ou seja, uma parte de Voldemort vivia dentro de Harry. Podemos associar os conceitos de Sombra a Voldemort e de Ego ou mente consciente ao próprio Harry.

Nesse momento Harry descobre que precisa morrer para que o vilão também morra. Ele se oferece então como sacrifício. Voldemort, no entanto, ao matá-lo, não mata o garoto, mas mata a si mesmo, a parte de sua alma que existia nele. Harry poderia, nesse sentido, representar também a Sombra de Voldemort, uma parte de si, talvez mais “bondosa” que ele desconhecesse.

No último livro da série temos uma explicação dada pela autora que, no entanto, não é dada no filme. Na história “o cálice de fogo” Voldemort assume um novo corpo, e utiliza o sangue do próprio Harry como parte da magia (visto que antes o vilão não podia tocá-lo pois se queimava devido a proteção do amor de sua mãe). O sangue representa a vida, e nesse sentido, houve então uma magia profunda que Voldemort desconhecia: enquanto ele vivesse naquele corpo, com o sangue de Harry correndo em suas veias, o próprio Harry não poderia morrer.

Chegamos aqui a conclusão de que a profecia estava errada, ela dizia que “um não poderia viver enquanto o outro fosse vivo”, mas na verdade um não poderia morrer enquanto o outro fosse vivo. Na tentativa de matar um ao outro eles não se deram conta que o outro era a chave para a sua imortalidade.

O outro representava o inimigo, mas também a sua oportunidade de integridade, de equilíbrio e de eternidade.

Harry, no entanto, não destrói a parte de Voldemort que existia em si, mas a aceita, acolhendo seu “destino”. Nesse sentido, ele não vai contra a parte obscura de sua personalidade, mas se torna consciente dela. E encontramos nesse ponto também, uma das razões para ele ter voltado da morte (novamente a ideia de renascimento de Jung), pois, ele se tornou o senhor da morte não somente por ter possuído as 3 relíquias da morte, mas por abraçar e aceitar a própria morte. Podemos associar esse ponto ao processo de individuação.

Jung escreve que o comportamento humano é condicionado não apenas pela história individual e racial (causalidade), mas também pelas metas e aspirações (teleologia). “Tanto o passado como realidade quanto o futuro como potencialidade orientam o nosso comportamento presente. A visão de Jung é prospectiva no sentido em que olha para a frente, para a linha de desenvolvimento futuro da pessoa, e retrospectiva, no sentido em que leva em conta o passado” (HALL; LINDZEY; CAMPBELL, 2007, p. 86).

Nesse ponto percebemos (mais claramente explicado no livro do que no filme) a razão pela qual Dumbledore não contou a Harry que ele era uma horcrux. O diretor confiou essa informação somente a Snape, pois acreditava que Harry só teria forças pra enfrentar tudo que enfrentou se estivesse baseado na teleologia, ou seja, na esperança de um futuro, sendo que, se ele soubesse que teria que morrer de qualquer forma, não conseguiria ter forças e determinação para enfrentar todos os sofrimentos e dificuldades que teve em seu caminho. Essa é a razão que Dumbledore usa para esconder de Harry esse segredo e para pedir que Snape o revele somente ao final, quando Voldemort estivesse vulnerável e as horcruxes estivessem próximas do fim.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Freire (2008) apresenta-nos a leitura com uma função pedagógica por nos proporcionar uma experiência “formadora, deformadora e transformadora” que desafia e modifica o leitor, afetando a constituição de sua subjetividade. O autor defende o uso da leitura de textos literários clássicos como parte da grade acadêmica dos futuros profissionais da Psicologia, argumentando a literatura como “instrumento de formação ética”, que questiona a formação da cultura e os padrões estabelecidos pela sociedade. Segundo ele, a leitura:

“(...) nos transforma, nos muda, nos atinge, Após a leitura de um grande livro, não podemos imaginar sermos ainda quem éramos. Ele nos toca em nossa abertura ao mundo e ao outro. A literatura, portanto, impele-nos na direção de nossa própria diferença, de nossa alteridade, em nós e nos outros.” (p. 08).

Santos e Silva (2018) argumentam que uma obra literária sempre vai trazer a subjetividade de seu escritor, demonstrando seus traços, crenças, valores e atitudes. Como podemos perceber na obra de Rowling, que se baseou na doutrina Nazista e na crença da superioridade racial, bem como pelos valores de amizade e solidariedade transmitidos pelas histórias. Os referidos autores apontam que, embora possa haver um sentido, uma moral por trás de uma história, o significado apreendido é sempre uma interação entre o texto e o leitor, como demonstrado no decorrer desse trabalho através dos diversos sentidos e percepções associados à teoria analítica.

Jung (1959) ao descrever o conceito de sublimação vai considerar o deslocamento da energia psíquica nesse caso como cultural, espiritual e superior; sendo governado pelo processo de individuação e pela função transcendente. A interpretação da obra literária e dos filmes da série Harry Potter foi uma experiência que desafiou o estabelecimento de uma relação mais palpável entre teoria e prática, pelo qual pode-se discutir os principais conceitos da teoria analítica, como arquétipos, inconsciente coletivo, processo de individuação, entropia, entre outros. Conclui-se que a Psicologia, ao estudar o ser humano, seus processos mentais e seu comportamento, tem forte ligação com a literatura; sendo que, assimilar os conhecimentos teóricos que estudamos se torna muito mais fácil e prazeroso quando os associamos as artes e manifestações culturais que, para nós, são importantes e nos trazem sentido e significado.


Tiago de Sousa Medeiros


REFERÊNCIAS


FREIRE, José Célio. Literatura e psicologia: a constituição subjetiva por meio da leitura como experiência. Fortaleza-CE, Universidade Federal do Ceará (UFC): Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 60, n. 2, 2008. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672008000200002> Acesso em 10 set. 2018.


HALL, Calvin S.; LINDZEY, Gardner; CAMPBELL, John B. A Teoria Analítica de Carl Jung. In:_______ Teorias da Personalidade. Tradução: Dora Mariana R. Ferreira da Silva. 4ª ed. São Paulo: Artmed S.A., 2007, cap. 3, pag. 83-114.


JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 1959. Tradução: Dora Mariana R. Ferreira da Silva; Maria Luiza Appy. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002, 469 p.


ROWLING, J. K. Harry Potter e a Pedra Filosofal. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, 223 p.


ROWLING, J. K. Harry Potter e a Câmara Secreta. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, 252 p.


ROWLING, J. K. Harry Potter e o Prisioneiro de Askaban. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, 318 p.


ROWLING, J. K. Harry Potter e o Cálice de Fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2001, 583 p.


ROWLING, J. K. Harry Potter e a Ordem da Fênix. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, 702 p.


ROWLING, J. K. Harry Potter e o Enigma do Príncipe. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, 510 p.


ROWLING, J. K. Harry Potter e as Relíquias da Morte. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, 590 p.


SANTOS, Rosemary Conceição dos; SANTOS, João Camilo dos; SILVA, José Aparecido da. Psicologia da Literatura e Psicologia na Literatura. Trends Psychol., Ribeirão Preto, vol. 26, nº 2, p. 767-780 - Junho/2018. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/tpsy/v26n2/2358-1883-tpsy-26-02-0767.pdf> Acesso em 29 set. 2018.

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